São Paulo, quinta-feira, 21 de abril de 1994
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A declaração dos direitos indígenas

GILBERTO VERGNE SABOIA

Há algum tempo a imprensa nacional tem refletido uma série de opiniões sobre o projeto de declaração dos direitos indígenas em elaboração nas Nações Unidas. Muitas opiniões expressadas têm sido baseadas em informações de segunda mão, publicadas na própria imprensa, sobre alguns dos aspectos contidos em texto preparado por especialistas do Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas da Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, órgão subsidiário da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Essas opiniões com frequência refletem uma visão parcial e procuram, algumas vezes, influenciar um debate interno nem sempre lúcido em torno da revisão constitucional, em particular no que se refere às terras indígenas, e a fortalecer a visão de que existiria, em torno do assunto, mais uma manifestação da propalada "conspiração" para subtrair a Amazônia da soberania brasileira.
Ao longo dos últimos nove anos, cinco dos membros da subcomissão reuniram-se anualmente para, ouvindo representantes de governos interessados e de organizações indígenas das mais diversas procedências –inclusive brasileiras–, preparar o projeto de declaração que será, a partir de agora, discutido no âmbito do sistema de direitos humanos das Nações Unidas.
Primeiramente, o projeto deverá ser apreciado pela subcomissão –ainda em nível técnico, pois trata-se de órgão composto por especialistas, não sendo intergovernamental– em sua sessão de agosto próximo, e, ano que vem, será submetido ao exame da Comissão de Direitos Humanos.
Esta sim, por primeira vez no nível governamental, deverá debruçar-se, talvez por algumas sessões, sobre o resultado do esforço do Grupo de Trabalho e as recomendações da subcomissão para, por meio de negociações entre as delegações governamentais, chegar ao aperfeiçoamento de proposta a ser submetida ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, e, finalmente, à adoção pela Assembléia Geral.
Tem havido, e continuará a haver, extensa oportunidade para refletir os interesses do Brasil na elaboração desse texto.
Este é o procedimento que leva à cristalização, no sistema das Nações Unidas, do reconhecimento de direitos humanos e das obrigações dos governos e da comunidade internacional de respeitá-los e promovê-los.
Foi dessa forma que se chegou à aprovação, pelas Nações Unidas, de instrumentos tais como a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e da Discriminação Baseada em Crença ou Religião, a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, a Declaração sobre os Direitos da Criança e a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Incapacitadas.
No caso dos indígenas, o Brasil –país democrático cuja Constituição Federal consagra um capítulo específico, ademais de nove outros dispositivos inseridos em outros capítulos constitucionais, aos direitos indígenas– desde o princípio, apóia a idéia de ser elaborada declaração, no âmbito das Nações Unidas, que reflita a situação e os direitos especiais das populações indígenas em relação ao restante das sociedades nacionais.
Esta postura insere-se em tradição fundamental da formação da nacionalidade brasileira: o reconhecimento, dentro da cidadania, da situação particular dos indígenas, como consagrado desde a época colonial e nas diversas Constituições republicanas, inclusive no que diz respeito à garantia, essencial para sobrevivência daquelas comunidades e para resguardar o seu direito a manter sua identidade própria e escolher livremente seu destino, do direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Como assinalou recentemente o ministro Rubens Ricupero, referindo-se ao debate sobre as terras indígenas: "Um Brasil em que os índios não tivessem um lugar estaria longe de poder realizar-se como nação, e não porque fôssemos sofrer pressões crescentes por isso, mas porque estaríamos renegando nossos valores éticos, nossa própria razão de ser".
É preciso reconhecer que o projeto elaborado pelo Grupo de Trabalho, ao longo de demoradas e laboriosas consultas com lideranças indígenas e organizações não-governamentais de direitos humanos, é muito ambicioso, reflexo das expectativas infladas de segmentos por muito tempo marginalizados em nossas sociedades.
Cabe agora iniciar o trabalho de depuração do que é razoável, dentro da perspectiva da convivência harmônica e parceria entre as sociedades modernas e as comunidades indígenas que orientará a Década Internacional do Índio, proclamada pelas Nações Unidas ano passado e a ser iniciada em dezembro próximo.

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