São Paulo, sexta-feira, 29 de abril de 1994
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Bertolucci escolhe o caminho das fábulas

ULDERICO MUNZI
DO "CORRIERE DELLA SERA"

"O Pequeno Buda" –que estréia hoje em São Paulo– é o último filme do cineasta italiano Bernardo Bertolucci, diretor de "O Último Tango em Paris", "1900" e "O Último Imperador".
Este encontro aconteceu um dia após a pré-estréia mundial de "O Pequeno Buda", em Paris, em novembro de 93.
Nele, Bertolucci fala de seu filme como uma antítese de "Parque dos Dinossauros".
Mas fala também da morte de Fellini como um momento catártico que poderá levar a Itália para o caminho da salvação. Uma Itália para onde Bertolucci, como um Ulisses do cinema, quer voltar o mais rapidamente: "Mudou o cenário que me fez ir embora em 1984. Quero fazer um filme intimista na minha terra".

Pergunta - O senhor é budista?
Resposta - Quem me dera! Sou um budista diletante. Não bastam dois anos, durante os quais me documentei e frequentei os Lamas, para tornar-me um sequaz daquela doutrina.
Meu filme pretende somente fazer os espectadores participarem da emoção que experimentei ao encontrar o budismo.
Pergunta - Quando foi esse encontro?
Resposta – Há algum tempo, quando Elsa Morante (escritora que foi casada com o romancista italiano Alberto Moravia) me deu de presente uma biografia do poeta e santo tibetano Milarepa.
Através daquelas páginas não entendi o budismo, mas a sua poesia. Não me interessava a história de Buda em si. Gostaria de fazer ressoar seu pensamento na vida cotidiana de hoje.
Então, em 1991, fui a Viena para encontrar-me com o Dalai Lama, que, num certo sentido, me causou fulgor. Saí do encontro com a convicção de fazer o filme. Porque entendi que a palavra budista, que quer dizer compaixão e talvez bondade, é muito desprezada por nós: não significa somente um pensamento de generosidade diante de quem sofre, mas representa também a inteligência na bondade, isto é, a compreensão da dor alheia.
O mundo necessita de compaixão. Voltei-me ao Dalai Lama e lhe disse: "Eu não sou nem mesmo um crente". Ele respondeu: "Tanto melhor". Talvez sentisse em mim a objetividade necessária para falar sobre o budismo.
Pergunta - Por que o senhor não se considera budista?
Resposta - Posso estar próximo da doutrina budista... Olha, aos meus olhos o budismo é algo de extrema importância. Para mim, tanto quanto o Partido Comunista quando a ele eu estive filiado.
Um dia abandonei o partido porque ser militante (e os budistas são militantes) quer dizer dedicar a própria vida a uma causa. Não posso dedicar-me ao budismo, mas repito, é importante difundir seu pensamento.
Pergunta - O filme, de fato, é didático?
Resposta - Não quero ser considerado um professor, sou apenas um aprendiz do budismo, um aprendiz bruxo, porque o budismo tibetano, entre o primeiro e segundo século, inseriu-se no Bon, uma religião xamanista e espiritualista que sobrevive nos seus ritos.
Pergunta - Por que o budismo continua a se difundir?
Resposta - Somos todos neobárbaros, as ideologias acabaram, há o desastre total da sociedade de consumo. Buda nos traz oxigênio.
Pergunta – "O Pequeno Buda", no seu contexto de total bondade, pode parecer uma ilusão e o senhor um ilusionista.
Resposta - É um filme novo para mim. Todo o meu cinema baseou-se em conflitos: entre mulher e homem, entre fascismo e comunismo, entre pais e filhos. Era o sentido da minha dramaturgia.
Em "O Pequeno Buda" procurei resguardar-me dos conflitos. Mesmo porque era um filme para crianças. Por isso escolhi o caminho das fábulas.
Pergunta - Também "Parque dos Dinossauros" é um filme para crianças.
Resposta - Talvez. Mas foi construído sobre o cinismo. Todo o espaço foi dado aos efeitos especiais e os personagens inexistem. São todos desprovidos de profundidade psicológica e de credibilidade. São funcionais aos efeitos especiais.
Pergunta - É verdade que Spielberg desprezou "Parque dos Dinossauros"?
Resposta - Ele o realizou com grande inteligência cínica, sabendo que quanto mais baixo voasse, maior platéia conquistaria.
Sentiu-se tão culpado por "Parque dos Dinossauros" que, terminadas as filmagens, não assistiu nem mesmo a montagem e fugiu para a Polônia para começar a filmar "A Lista de Schindler". Queria fazer um mea-culpa.
Pergunta - Fale-nos de seu próximo filme.
Resposta - Será um filme intimista, uma história de amor ambientada na Itália de hoje.
A Itália está para "descer as cortinas" sobre o cinismo e a corrupção. No passado eu tinha a sensação de que todos os italianos participavam desses males. Eis porque fui embora.
Mas, agora, sinto que está próximo um exame de consciência, os meus compatriotas deverão perceber que foram eles que levaram ao parlamento, com o voto, corruptos e corruptores.
Pergunta - Mas o senhor crê, realmente, na mudança dos italianos?
Resposta - Espero. Olha, a agonia de Fellini foi muito importante. Repentinamente, era como se o circo pirotécnico dos escândalos tivesse se retirado diante da mágoa daquela morte anunciada.
É como se Fellini tivesse dito: "Parem e pensem". Palavras de budista. Foi-se como um grandioso Lama.

Tradução de ANASTASIA CAMPANERUT

LEIA MAIS
Sobre "O Pequedo Buda" e as outras estréias de cinema às págs. 5-4, 5-6 e 5-7

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