São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Senna deu força ao conceito de imagem

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estou no rol das pessoas que se surpreenderam com a reação provocada pela morte de Ayrton Senna. Surpresa psicológica, individual, com a força de minha própria tristeza. Surpresa sociológica, ante a atitude coletiva do povo paulistano, mais diretamente envolvido e da gente de outros Estados e cidades. Até de outros países.
Foram muitos os que me confessaram, durante a semana, a dificuldade de compreensão do fenômeno. Sabia-se que o piloto era estimado, mas a resposta popular ultrapassou as previsões imagináveis. Obrigado, por força do ofício, a pensar no aspecto jurídico dos bens da vida, verifiquei que a resposta popular tem a ver com o conceito de imagem, que a Constituição de 1988 foi a primeira a valorizar.
Na versão mais simples, imagem corresponde ao aspecto físico da pessoa. Na linguagem dos jovens a imagem é o visual. "Mudei meu visual", diz o rapaz quando corta rente os longos cabelos. A imagem é mais que o visual. Inclui a representação pelos meios artísticos, mecânicos ou eletrônicos. A fotografia e a caricatura, o retrato pintado ou reproduzido em computador são imagens. A imagem se manifesta, ainda por setores da individualidade física. A voz de Iris Letieri, anunciadora de vôos no aeroporto do Galeão, do locutor Lombardi nos programas de Silvio Santos, o nariz de Barbra Streisand e o de Alan Prost, o quadril e as pernas da atriz que anuncia as calcinhas Hope são segmentos autônomos de suas imagens.
Trato aqui apenas da imagem de pessoas. Contudo, instituições, empresas, órgãos públicos e privados, assim como pessoas coletivamente referidas e não individuadas, também têm "imagem". Ninguém dirá que o Instituto Butantan tem imagem igual à da Câmara dos Deputados. Isso tudo pode parecer superficial. Não é. Walter Moraes, no melhor estudo brasileiro que conheço sobre o direito à imagem, alinha duas dezenas de trabalhos estrangeiros a respeito. Moraes observa que a discussão jurídica do tema provocou "o clamor de uma doutrina turbulenta e até hoje inconciliável".
Volto a Ayrton Senna. Mesmo quem jamais acompanhou o automobilismo (ouvi mais de um depoimento) tinha uma imagem favorável do piloto. Aqui imagem se refere a todos os sentidos em que o termo pode ser compreendido, até o das ranhetices, brigas e implicâncias, com e sem razão. Imagem característica do fora-de-série, na profissão escolhida e da figura humana que projetava causas-e-efeitos cuja qualidade nem ele, nem nós, o povo, poderíamos avaliar durante sua vida. Só o descobrimos na morte. As demonstrações de prestígio no estrangeiro confirmam o que vimos por aqui.
A Constituição brasileira, no décimo inciso de seu artigo 5º, garante a inviolabilidade da imagem. Se a imagem é ruim ou impopular a projeção do eu é negativa, mesmo que a pessoa tenha qualidades. Ao reverso, se a imagem é boa, a projeção é favorável, ainda quando não coincida com os méritos pessoais daquele ao qual ela se refere.
Ayrton Senna tinha imagem compatível com seus méritos, mas (agora me parece evidente) com extrapolações impensáveis. Talvez ele mesmo se surpreendesse com a exteriorização dela em camadas heterogêneas do povo. Nele, a imagem não foi uma garantia da inviolabilidade constitucional. Foi conquista lenta, mas constante. De tão grande solidez, que -embora a imagem mantenha o processo ininterrupto de reavaliação- explica as grandes demonstrações espontâneas de tristeza e dor.

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