São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Massacre ou "panelocídio"?

JANER CRISTALDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Procura e acharás, já disse alguém. Eivado do preceito bíblico, o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, deslocou-se de Brasília, em agosto do ano passado, até a aldeia de Haximu para exercer seu ofício –procurar– e acabou encontrando 73 mortos, como afirmou à Folha (21/08/93).
Verdade que não sabia em que país estava, se no Brasil ou na Venezuela. Mas isso pouco importa. Procurava mortos e os encontrou. E denunciou: genocídio.
Na ocasião, mais cauteloso, o procurador Aurélio Virgílio Veiga Rios afirmou à Folha que o crime de genocídio é "do tipo que exige a comprovação de sua materialidade". Segundo Rios, por esta razão, o assassinato de seis ianomâmis no final de julho de 93 não resultara em inquérito porque os corpos não haviam sido encontrados.
É portanto estranho que Veiga Rios, no suplemento Mais! de domingo passado, reitere a ocorrência de genocídio, quando cadáver algum foi encontrado. O procurador, em sua vontade de achar, apega-se a 118 fragmentos de ossos, dois dentes e alguns fios de cabelos, "tendo os senhores peritos afirmado que o material serviria como amostra padrão de ossos carbonizados sabidamente humanos". Admitamos a hipótese dos senhores peritos. Se os fragmentos são sabidamente humanos, nada nos leva a deduzir que sejam de índios. Que mais não seja, a partir de 118 fragmentos de ossos não se pode inculpar 24 garimpeiros. Há depoimentos dos supostos sobreviventes. São tantos que o numero de vítimas vai de 16 a 120. Aristides Junqueira, por exemplo, nos jornais do dia 21 de agosto, confirmou 73, sem ter visto nenhum corpo. Quanto à ossada antiga exibida pelo então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, obviamente não pertencia a alguém que tivesse morrido uma semana antes.
Quando o ministro chegou à aldeia, perguntou ao ianomâmi Davi Kopenawa –prêmio "Global 500" da ONU e virtual candidato a deputado federal nas próximas eleições– se sabia quantos índios haviam morrido. Kopenawa foi preciso:
– Foram 19.
– Como você chegou a este número?
– Ouvi na Rádio Nacional –disse Kopenawa.
O procurador Veiga Rios brande o artigo 7º do Código Penal brasileiro, para justificar a interferência da Justiça brasileira em um crime que, se tivesse ocorrido, teria sido na Venezuela. Sem falar no fato de que não há comprovação alguma de qualquer genocídio, seria interessante perguntar aos venezuelanos o que pensam da investigação da Polícia Federal brasileira em torno de eventuais crimes praticados em seu território. O procurador parece crer que um artigo do Código Penal Brasileiro pode interferir na legislação de um país estrangeiro.
Como pano de fundo do ianoblefe, temos a luta pela mais rica e vasta região do planeta, que o Brasil não soube ocupar. Na imprensa internacional, há muito se fala em uma autoridade supranacional para proteger a Amazônia. Comentando esta entidade, quando sua criação estava sendo cogitada, tanto o general Zenildo de Lucena como o ministro do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), almirante Arnaldo Leite Pereira, rechaçaram o debate sobre o assunto. "Isto não existe", disse Lucena. "É inaceitável", disse Leite Pereira. "Seria ferir a nossa soberania e isso nós não admitimos, da mesma forma que nenhum outro país admitiria".
Em 21 de dezembro de 1993, a Assembléia Nacional da ONU aprovou a criação de um Alto Comissariado de Direitos Humanos, que terá "um papel ativo na prevenção de violações de direitos humanos em todo mundo". Pois bem, a entidade está criada. Agora "isto" existe. Para a imprensa americana e européia, o Brasil já é um invasor da Amazônia. Quando o roqueiro inglês Sting veio ao Brasil determinar as fronteiras da "nação" ianomâmi, nossos militares permaneceram silentes. Collor de Mello entregou três Bélgicas a dez mil silvícolas, que ainda não emergiram do estágio de uma cultura ágrafa. Agora, depois do fato consumado, os militares despertam para a defesa da integridade do país.
Para o comandante interino da 1ª Brigada de Infantaria de Selva, coronel João Paulo Saboya Burnier, a reserva dos ianomâmis representa uma ameaça à integridade do território nacional. "Tenho certeza absoluta. Há a possibilidade da criação de uma nação indígena, em uma área do território nacional e outra do território venezuelano. Ora, uma nação não sobrevive dentro do território de outra. Isso ameaça nossa integridade". Se não reagir às pretensões internacionais sobre a Amazônia, o Brasil pode dá-la como território perdido. Nestes dias de ex-URSS, ex-Iugoslávia, ex-Tchecoslováquia, o ex-Brasil é apenas uma questão de tempo.
Resumindo o ianoblefe: pode até existir réu confesso, como alega o procurador Rios. Mas sem cadáver não há crime. Impossível negar a ocorrência de assassinatos, tanto de indígenas como de brancos, na Amazônia. Onde há armas há violência. Daí a afirmar-se quem matou quem, não bastam vagos e contraditórios relatos. O estado de selvageria dos ianomâmis, que sequer chegaram a um acordo social como o dos chimpanzés, foi amplamente provado elo antropólogo Napoleon Chagnon. Cabe lembrar também o testemunho de Sting. Se para o ministro Maurício Corrêa "índio não mente", o mesmo já não pensa o roqueiro inglês, um dos patronos do assassino txucarramãe Raoni no exterior: "Os índios tentam enganar você o tempo todo e podem ser muito frustrantes. Eles vêem os brancos mais como uma fonte de recursos do que como amigos. Eu era muito ingênuo. Estou deixando para trás os meus dias de selva."
O único sinal de um tiroteio na aldeia de Haximu são fotos de panelas perfuradas por balas, encontradas pelo ministro da Justiça quando, achando que investigava território brasileiro, estava em verdade invadindo a Venezuela. Temos no máximo um panelocídio no país vizinho, ocorrência que ainda não foi tipificada como crime em legislação alguma.

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