São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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'Boas maneiras' para a arte contemporânea

OSWALDO COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

O artista alemão Lothar Baumgarten é um paradoxo: praticamente desconhecido do público devido à natureza difícil de seu trabalho, desfruta no entanto de uma reputação excepcional perante a crítica internacional, tendo participado das Documentas de Kassel de 1972, 1982 e 1992 e da Bienal de Veneza de 1978, assim como de inúmeras exposições no circuito de galerias e museus.
Hoje com 44 anos, ex-aluno do lendário Joseph Beuys, Baumgarten evita produzir objetos para consumo do mercado de arte, preferindo montar instalações invendáveis que ocupam salas de galerias e museus, ou até mesmo prédios inteiros.
Combinação curiosa de artista plástico com naturalista na tradição alemã de Alexandre Von Humboldt, Baumgarten viveu quase dois anos em total isolamento com os índios ianomami na Venezuela para melhor compreender, através de uma ótica distante, sua própria condição social. Seu trabalho procura promover o diálogo entre culturas em atrito, aproveitando o poder da arte de transmitir o irracional.
Há dez anos Baumgarten quer montar uma instalação em torno da presença de Maurício de Nassau no Brasil holandês. Convidado, não participou das exposições promovidas pela Eco-92. Em 93, Baumgarten realizou no Museu Guggenheim de Nova York, desenhado por Frank Lloyd Wright, uma exposição controvertida, a "America Invention", onde pintou dezenas de nomes de povos indígenas no interior do prédio.
Baumgarten falou à Folha de sua exposição no Guggenheim, suas preocupações artísticas e ecológicas e seus projetos brasileiros.

Folha – Como surgiu seu projeto para o Guggenheim?
Lothar Baumgarten – "América Invenção" surgiu da estrutura orgânica do museu, que decorre da sua arquitetura.
Minha intenção era expressar o "genius loci" desse monumento da arquitetura, celebrando sua estrutura como metáfora para um conceito de existência. Quis chamar a atenção do visitante para sua própria condição ao descer a rampa em forma de espiral, onde enfrenta uma situação diferente da de qualquer outro museu.
O visitante se vê incapaz de se relacionar de forma retangular com as paredes, ou mesmo com os objetos, pois o movimento circular impede qualquer posição convencional com relação a uma pintura.
Folha – Aquela rampa poderia ser uma homenagem a Galileu. Nunca nos deixa esquecer da gravidade, e empurra gordos e magros para baixo na mesma velocidade...
Baumgarten – ... pois todos se equivalem no espaço. Se encarar a espiral como um universo autônomo, como um sistema fechado tal como outras estruturas orgânicas, verá que não existem os conceitos de frente e verso, esquerda ou direita, certo ou errado.
A espiral pode ser vista como um espaço cósmico onde, uma vez determinada sua posição através da gravidade, o ser está sempre no centro, onde quer que se encontre. Como ondas geradas pelo jogar de pedras na água, os nomes das sociedades indígenas das Américas ecoam pela espiral.
Folha – Como é a estrutura geográfica da peça?
Baumgarten – Do Alasca até a Califórnia, da Terra Nova até a Flórida, de costa a costa, os nomes dos povos enchem o espaço, pintados de vermelho e carvão.
Imagine um futuro com dois mapas-múndi. Os países ao norte do Equador usariam o mapa que sempre se usou, e os países ao sul do Equador usariam um novo mapa onde apareceriam na metade superior, enquanto a Europa aparece de cabeça para baixo na parte inferior. Essa é uma metáfora para uma sociedade mundial onde não há espaço para as exigências do poder colonizador.
Folha – É o que representam os nomes dos povos escritos no parapeito?
Baumgarten – Todos os nomes antropológicos das tribos indígenas que vemos no museu são criações européias. Os europeus denominavam o desconhecido para controlar e possuir. Nomes eram atribuídos a esmo, à força, por repressão ou ignorância, e quase todos eram equivocados. As sociedades se chamavam –e chamam– de forma bem diversa.
Os verdadeiros nomes, pintados em vermelho, frequentemente apenas significavam "ser humano", ou "as pessoas". Um povo poderia receber dez nomes diferentes simplesmente por ter dez tribos vizinhas.
Além de sempre criar meus trabalhos para um lugar à luz do dia, a luz artificial, os outros materiais envolvidos, o chão, as superfícies–, a peça só se completa quando o espectador contribui com seu próprio conhecimento, refletindo-a. O espectador precisa saber certas coisas, precisa ter lido certas coisas, tem que saber relacioná-las ao passado e conhecer a história da arte para compreender a gama completa da peça.
É o mesmo quando as pessoas olham para um Ticiano. Se não sabem nada sobre iconografia, vêem somente pessoas numa pintura. Talvez haja um palácio, uma árvore, mas não há narrativa, pois não sabem quem é quem, nem o que está sendo representado. É preciso contribuir com seus conhecimentos, não só para o meu trabalho, mas para o de qualquer um.
Folha – Abstraindo a peça no Guggenheim, quais são suas principais preocupações?
Baumgarten – Procuro promover um diálogo, dentro de um contexto arquitetônico, através de uma gramática artística que dá ao conhecimento uma forma contemporânea de beleza e de necessidade transparente.
É uma resposta tanto para o espírito quanto para a cabeça. É uma tentativa de visualizar o indizível e escrever sobre o invisível. É sobre as pequenas coisas que as grandes massas ocultam. É sobre a interação de disciplinas para gerar uma linguagem capaz de transformar e combinar as diferentes óticas sócio-políticas e histórico-culturais. Não me sinto voltado para a produção de colecionadores. A presença no local de trabalho é fundamental para alcançar o diálogo.
Portanto, cada trabalho é, de certa forma, muito diferente do anterior, por levar em consideração o contexto de cada lugar. Considero arrogante e entediante simplesmente encher um navio de obras e mandar para algum lugar, dizendo "esse é o meu trabalho." Assim não há qualquer interação. Procuro alcançar o diálogo através de uma reflexão ligada ao contexto formal.
Folha – Você teve que desenvolver uma estratégia visual para engajar um público sensorialmente saturado e de precário poder de concentração.
Baumgarten – A mente visual é tão poluída pela tecnologia e pelos sistemas que inventamos para nossa diversão que precisamos lutar para selecionar o que é útil.
Somos como ovelhas, brincando com essa montanha gigantesca de arte, construída para durar séculos, e fica muito difícil distinguir o que é realmente necessário.
Se olharmos com cuidado, descobriremos que grande parte dessa produção não faz sentido. Ao refletir sobre a época e minha produção, resolvi evitar essa posição.
Folha- A exposição gera as pinturas, e não o posto. Mas pintar, hoje, não seria apenas um gesto esgotado e nostálgico, como fazer vitrais ou mosaicos? Que sentido resta em pintar?
Baumgarten - É um processo sem fim. Existe um eterno fascínio com a invenção de novas respostas, formas, cores, texturas, materiais. A questão é como lidamos com essas coisas. Não damos espaço para que sejam autênticas, não permitimos a passagem do tempo.
As perguntas que devemos fazer são simplesmente "precisamos disso?" e "faz sentido?". Ainda acredito que pintar é nato - a habilidade de ver não é algo que se possa aprender.
Folha- Por que a produção de objetos deixou de interessá-lo?
Baumgarten - Um trabalho como "America Invenção" é, de certa forma, muito higiênico. As pessoas o possuem sem ter que carregar algo embaixo do braço, sem ter que limpar ou cuidar dele. Simplesmente o possuem na cabeça, onde o poder espiritual do trabalho pode funcionar.
Considero essa uma forma interessante de travar um diálogo com o público e, talvez, alterar a gramática estética das pessoas no seu cotidiano subsequente. Acho que essa peça poderá enriquecer as pessoas se as ajudar a ver as coisas de modo diferente, ou se passarem a reparar em coisas que não haviam reparado antes, ou mesmo se tocarem nas coisas, ou as usarem, de maneira diferente.
Diria que me interessam as boas maneiras. Me interessa preservar a gramática do agir. Às vezes me sinto com o pé no freio, andando mais devagar para evitar essa gigantesca onda de diversões.
Folha- Qual o papel da beleza no seu trabalho? Raras vezes se viu uma instalação tão francamente bonita quanto a sua no Guggenheim. Como impedir que a beleza distraia do conteúdo e se apodere do trabalho?
Baumgarten - Essa é uma questão fundamental, pois se um perfume é forte demais, não se sente o cheiro da sopa... Meu trabalho adquiriu uma certa caligrafia, mas preciso me cuidar para que as coisas não fiquem polidas demais, senão posso me interessar demais por esse lado e ficar como Narciso, que de tanto se amar ficou cego para o mundo.
Folha- Mas para que ser estético? Por que você não usa, por exemplo, letras "feias" para que o recado não corra perigo de se estetizar demais?
Baumgarten - A arte, para mim, envolve a beleza. Não gostaria de apresentar um recado entre aspas, como mensagem política. Afinal, até letras "feias" podem ser estéticas, como no grafitti.
Para minha instalação "América Invenção" escolhi um certo tipo pelo seu simbolismo histórico. A letra se chama Vendôme, e foi criada em Paris em 1952. É da mesma década em que o museu foi construído e, como ele, não possui ângulos retos. É um tipo que contém um conceito estético de época.
Folha- Há várias tribos brasileiras em "America Invenção", como Xavante, Tupinambá, Bororó, Ianomami...
Baumgarten - O Brasil é o maior país do continente, e possui a maior variedade de estruturas comunitárias. Povos do litoral têm modos e arquitetura diferentes dos de Mato Grosso. Portanto, são culturas muito diferenciadas, nas línguas, terra, topografia, mais do que em outros países.
Por isso inclui muitas sociedades brasileiras na peça, sociedades que são da maior importância para todo o continente. Na América do Sul ainda sobrevivem pequenas autarquias, mas parece ser só uma questão de tempo até que se alterem, pois não sobra muito espaço para continuarem a se comportar como antes. Creio que estamos presenciando o fim do nomadismo, da caça. O futuro será agrícola, por toda parte.
Folha- O que o fez viver com os ianomami?
Baumgarten - Após muita reflexão sobre meu trabalho, contexto e cultura, cheguei a um ponto onde ficou claro que vivia em um sistema fechado. Me senti incapaz de refletir sobre minha própria sociedade, de vê-la de fora, e percebi que isso só seria possível se vivesse em um sistema diferente, livre de padrões ocidentais.
Nos 18 meses em que vivi com os ianomami, a partir de 1978, descobri uma sociedade autárquica e única. Quando voltei, começou a verdadeira viagem. Levei oito meses apenas para compreender de novo minha própria estrutura e parar de me surpreender com a maneira como vivemos.
Voltei mais cedo do que queria pois estava doente de malária, senão talvez tivesse ficado uns três anos. Depois de voltar, pude refletir sobre minha sociedade através dos olhos dos ianomami.
Folha- E seu projeto com relação à colonização holandesa do Nordeste brasileiro?
Baumgarten - Tenho um profundo interesse pela expedição de Mauricio de Nassau no começo do século 17, quando parte da costa brasileira foi ocupada por interesses comerciais holandeses. Me interessa como Maurício de Nassau estabeleceu sua administração, como governou essa colônia.
Foi um homem interessante, que trouxe cientistas e artistas, como o pintor Albert Eckhout, estudante de Rembrandt, que foi o primeiro a pintar a população indígena sem idealizar os corpos no estilo grego ou romano.
Minha idéia, dez anos atrás, foi de fotografar as regiões que Franz Post e Eckhout pintaram, e fazer uma exposição no Brasil com documentos sobre Nassau, incluindo algumas pinturas originais. O governo holandês foi muito generoso, se oferecendo para cobrir parte das despesas, mas não foi possível obter o restante, nem do governo alemão, nem de particulares.
Ainda me interessa muito esse projeto, e acho que poderia ser até melhor hoje, com mais experiência. Essa meditação sobre o Brasil holandês não seria apenas sobre o passado, mas se ocuparia do presente, das pessoas que hoje vivem nessas regiões. Afinal, não se fala mais holandês no Nordeste...
Folha- Em 1992 lhe convidaram para executar um projeto no Brasil, e você não quis.
Baumgarten - O Instituto Goethe me convidou a realizar um trabalho para uma exposição com o título ofensivo de "conquista soft", para coincidir com a Eco-92. Queriam convidar muitos artistas para virem ao Brasil procurar lugares tais como estações de trem abandonadas no meio da selva, armazéns em Belém, na Bahia, e outros lugares, para trabalhar.
Achei tudo muito exótico e estranho, convidar artistas para trabalhar em um lugar pitoresco e aí levá-los para São Paulo para mostrar como artistas europeus e americanos se relacionam com questões ecológicas, mais uma vez tratadas como diversão, nas costas do contribuinte brasileiro.
Propus, como única coisa a fazer nesse contexto, a compra de uma página dupla em algum jornal ou revista local durante o desenrolar da conferência para que povos indígenas pudessem imprimir manifestos ou programas de teor ecológico, ou até mesmo relacionados à sua posição difícil na sociedade. Queria dar-lhes a oportunidade de se expressar, contribuindo meu honorário e o dinheiro da passagem.
Inicialmente o Instituto Goethe se entusiasmou, mas mais tarde achou arriscado e político demais e, no final, disseram que não havia verba suficiente para isso. Minha participação teria se limitado a possibilitar essas manifestações durante a conferência, limitando meu papel, no máximo, à programação da página.
Folha- Muitos pensam que seu trabalho lida apenas com sociedades indígenas, esquecendo suas instalações no Metrô de Paris, ou sua sala permanente no Museum fur Moderne Kunst de Frankfurt. Sua versão berlinense do projeto da Eco-92 poderia ter sido oferecer uma página dupla para os imigrantes turcos...
Baumgarten - Exatamente, pois trata-se do mesmo assunto em outro lugar. Me interessa mais refletir sobre minha própria condição do que criticar determinado tipo de comportamento social, ou defender os direitos do próximo, ou das minorias sociais. Me interessa também criticar as práticas institucionais dos museus. Procuro desenvolver um discurso sobre as boas maneiras. Não um discurso rígido, mas que estabeleça certas regras que coloquem as coisas nos lugares, culminando sempre nas questões "é necessário?" e "faz sentido?"

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