São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Cigarro hoje é um sentimento de culpa

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nós não fumamos o cigarro; somos fumados por ele. O cigarro é um filtro entre nós e o mundo. Nem falo do câncer que nos espera ao fim da linha da terra à lua, ao fim de 15.000 carteiras. Isto é o lucro almejado por nosso masoquismo.
Falo de outro filtro. Entre nós e o outro criamos uma tênue fronteira que nos especializa e individualiza. Há entre mim e você uma terceira coisa que me protege de um desamparo total, de estar solto na vida sem nada, sem ao menos a chance de fingir que meu silêncio, meu vazio é apenas a pausa para dar uma tragada. O cigarro nos dá uma certa profundidade, um certo monólogo interior de filme "noir".
Como Humphrey Bogart fazia. Ele parecia que estava no amargor de uma conversa secreta consigo mesmo, mastigando a "bagana" no canto da boca, gesto que até originou a gíria de maconheiros americanos "to bogart the joint" –ser exclusivista com o "baseado" que circula no grupo. A profunda tristeza no rosto de Bogart tinha o véu do fumo na frente, enquanto ele preparava o câncer que o matou. Mas este era o gesto introvertido, o gesto "detetive confidencial", "macho" do cigarro.
Havia também o gesto "Lauren Bacall". Era o gesto "mulher". Era tendente à piteira, um largo volteio elegante, enluvado de dedos longos que afastava a lady sofisticada de um mundo de assédios.
Era o cigarro-fêmea, que se desenhava em largo "falo" fino e chic de coqueteria. Esses eram os dois modos clássicos de fumar: para fora e para dentro. Em ambos, repito, se criava uma cortina de proteção, uma névoa que camuflava nossa obviedade. Morríamos como passarinhos, mas não tínhamos culpa. Depois que o cigarro virou a "causa mortis" da moda, surgiram novos tipos básicos.
Não fumamos mais com orgulho. HOje somos atravessados por outros prazeres mais letais. Fumamos com o "frisson" suicida de trepar sem camisinha. Fumamos escondidos de nós mesmos e o cigarro virou um pêndulo entre o sim e o não. Fumar hoje é oscilar entre uma melancolia e um projeto.
Como projeto temos um (já que o mundo não nos dá nada): parar de fumar um dia, para os mais utópicos. Para os social-democratas, diminuir para dez por dia, numa contabilidade aviltante de "agora pode; agora não". "Quando eu parar de fumar..." virou um marco de nossa felicidade, nunca alcançada.
Ou então, no outro pólo, fumar virou um refocilar medonho e desesperado num "dane-se", que também tem o charme letal de que a vida não merece mesmo nada. "Fumar ou não fumar" virou um ato crítico, uma visão de mundo, sem o glamour que o pós-guerra nos dava, quando andaríamos uma milha por um "Camel" o quando a "preferência nacional" nos fazia orgulhosos de fumar "Continental", sem filtro.
Os românticos fumavam. Álvares de Azevedo tem um poema para os cigarros, culminando no seu charuto alemão. Fumar era uma esperança romântica, amava as névoas que davam ao mundo ar gótico de neblinas, noites nas tavernas.
O filtro foi o início da angústia; a crise começou com a chegada do filtro. Eu me lembro quando o "Hollywood" começou a ter filtro, creio que foi em 66. Foi um dia importante no país. O cigarro básico tinha posto uma camisinha. Por quê? Perguntávamos. Por que este centímetro culpabilizante de defesa? E quando chegaram os baixos teores então, aquela coisa covarde, aquele arreglo com a morte, aquela mímica vazia de perigo e cheia de humilhações.
Quem fuma esses "frees" não resolveu a própria vida. Temos algo em comum, somos covardes, nós arrostamos o perigo de morrer em enfizemas hediondos. O cigarro de baixos teores não tem a grandeza barroca dourada dos velhos "Liberty Ovais", dos velhos "Douradinhos Extras", dos "Saratogas", do tabaco louro ou negro explodindo entre os dedos, antes de um vôo a jato ou depois de uma proeza sexual. O cigarro é hoje nosso sentimento de culpa, a marca de gente indecisa, que não sabe se quer ou não se matar.
O cigarro hoje é a marca dos vacilantes. Fumávamos por esperança. Hoje, fumamos por medo. Estamos menos sozinhos num quarto de hotel de cidade desconhecida, se uma fumaça se evola de nós. Apesar de sabermos que nos mata, o cigarro nos dá a ilusão de que realmente estamos vivos. Fumamos "Hollywood" para ver se faremos sucesso, fumamos "Carlton" na esperança de um caviar, ou "Vila Rica" pra levarmos vantagem em tudo, certo? Nos bons tempos, fumando, deixávamos de ser realidade; virávamos ficção.
Hoje, mesmo com as maiores efeitos especiais, sempre vem a tarja de que "fumar é prejudicial à saúde" –como se não subéssemos, como se não fosse justamente por isso que desenhamos espirais em volta de nossa cabeça. Fumando, temos a ilusão de que nosso destino está em nossas mãos e que portanto podemos escolher não morrer. Eu não fumo, e vou morrer. A morte não tem filtro.

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