São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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Klein escreve sobre fascínio do cigarro

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Richard Klein, 53, fumante de pelo menos 30 cigarros por dia durante 38 anos (dos 12 aos 51), crítico literário e professor de Francês na Universidade de Cornell, Nova York, está entre as pouquíssimas pessoas de prestígio social nos EUA com coragem de defender o direito de fumar.
Fora ele, autor de "Cigarros São Sublimes" (Duke University Press, 205 págs., US$ 21,95), só os capitães da indústria do tabaco têm vindo a público enfrentar a fúria da campanha contra o fumo. Mas Klein também bate duro nos fabricantes de cigarros: "Eles mentem e não fazem produtos naturais."
Em entrevista exclusiva à Folha, Klein falou sobre as qualidades sociais do cigarro, tema central de seu trabalho, e a possibilidade de "se atingir dois objetivos contraditórios ao mesmo tempo: garantir os direitos absolutos de fumar e de não ser vítima do cigarro dos outros."
Klein diz ter escrito este livro, o primeiro de sua vida, para ser capaz de largar o hábito de fumar, "Para mim, não era suficiente saber que o cigarro faz mal. Eu precisava entender por que ele exerce tamanho fascínio sobre mais de um bilhão de pessoas que fumam."
"Também não é suficiente dizer que as pessoas que fumam são dependentes da nicotina. A constatação da depndência em si não explica nada. Afinal, outras bilhões de pessoas nunca começaram a fumar ou conseguiram parar. Fumar implica uma disposição persistente de achar algum benefício ou prazer na droga", argumenta Klein.
Os cigarros são "sublimes", de acordo com ele, no sentido que o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) deu ao termo: a satisfação estética que inclui uma experiência negativa, um choque, um bloqueio, uma intimidação diante da mortalidade.
"A beleza dos cigarros nunca foi entendida ou representada como inequivocamente positiva - sempre foi associada com mau gosto, transgressão e morte. Talvez esteja aí mesmo a fonte de sua atração por tantas pessoas", afirma Klein.
Para ele, o valor do cigarro hoje em dia ë "determinado exclusivamente a partir de seus efeitos nocivos: para bani-los, basta dizer que eles fazem mal à saúde. Mas será que esse valor da saúde deve ser o único critério para definir o que é bom ou que é belo?"
Klein responde: "Talvez as pessoas possam ter o direito de pesar as vantagens do cigarro contra seus riscos. Afinal, a própria vida é uma doença progressiva, da qual só nos recuperamos postumamente. Se ter saúde é estar livre da doença, só se consegue ser saudável por meio da morte".
A mania de alguns americanos de colocar a saúde física como supremo valor social e de tentar forçar toda a sociedade a adotar comportamentos que conduzam a um estado saudável e à longevidade é chamada por Klein de "saudismo" e, segundo ele, ganhou muita ênfase na era pós-Aids.
"O saudismo se tornou parte da ideologia dominante nos EUA por razões que parecem alternadamente ingênuas e sinistras. Ele ajuda a mascarar a depredação cometida por uma industrialização cruel e a incentivar os interesses imediatos de alguns setores da economia", diz ele.
O livro faz uma admirável interpretação de várias obras de arte que têm o cigarro como tema principal ou acessório: poemas (de Laforgue e Mallarmé, entre outros), óperas ( "Carmen", de Bizet), romances ( "As Confissões de Zeno", de Italo Svevo), filmes ( "Casablanca").
A partir desses trabalhos artísticos, de tratados filosóficos ( "O Ser e o Nada", de Sartre) e da sua própria observação, Klein faz uma lista de qualidades do cigarro, suas vantagens sociais, benefícios que ele traz para as pessoas que fumam.
O cigarro oferece consolo em momentos de dor, alivia a ansiedade, diminui o estresse, aumenta o poder de concentração, mitiga a sensação de fome, induz a formas de satisfação estética e de consciência reflexiva, é um instrumento para mediar a interação social ( pode servir tanto para barrar a intrusão de estranhos quanto para sedutoramente convidar à intrusão), está associado a lutas de liberação sexual e política.
"Apesar de seus múltiplos benefícios e de sua inegável beleza", argumenta Klein, "o cigarro é vítima de campanha puritana que visa seu banimento da sociedade". Mas ele não acha que isso vá acontecer porque "não há no mundo nenhuma sociedade sem cigarros" e porque em momentos de grave crise social, como as guerras, por exemplos, valoriza-se o cigarro.
Klein acha que um dos motivos por que a campanha antitabagista tem tido tanto êxito recente é a crença generalizada de que o perigo de guerra foi eliminado no Ocidente. Em todas as guerras o hábito do fumo foi sempre estimulado como algo não apenas positivo mais indispensável para as pessoas, em especial para os soldados.
Um dos capítulos do licro de Klein é dedicado ao papel do cigarro na guerra. Ele analisa todas as passagens com menção a cigarros em livros sobre guerras para daí inferir o que se espera do fumo nesses casos.
Outra razão por que Klein não acredita no sucesso absoluto da campanha para acabar com o cigarro é o fato de que a oposição ao fumo é cíclica, de acordo com ele.
Houve vários períodos no passado em que o cigarro foi considerado uma desgraça. Em 1896, 26 Estados americanos proibiam o fumo. Depois, como em outras ocasiões, a oposição ao fumo arrefeceu, quase sempre por causa de situações de graves crises coletivas.
O apego dos EUA ao conceito de liberdade de expressão é mais um ponto ressaktadi oir Klein a favor da tese de que o cigarro não será proíbido no país: "Fumar não é apenas um ato físico - também é um discurso, uma forma sem palavras mas eloquente de uma pessoa se expressar. É um discurso totalmente codificado, retoricamente complexo, narrativamente articulado, com um vasto repertório de convenções bem entendidas".
Mas o principal dado com que ele joga para demonstrar que o cigarro não está abolido dos EUA é o crescimento de seu consumo entre jovens negros e mulheres, grupos sociais que, segundo Klein, estão em guerra.
Se o cigarro vai continuar a existir dentro da lei (já que ninguém duvida da sua sobrevivência caso seja proibido), Klein acha que se deve pensar em fórmulas para garantir a convivência dos fumantes e dos não-fumantes que não querem ser incomodados pela fumaça alheia.
Ele acha, por exemplo, absurdo proibir as pessoas de fumarem durante vôos de avião: "O cigarro é uma das melhores, mais eficientes e civilizadas maneiras de se controlar a ansiedade numa situação que deixa muitas pessoas bastante nervosas e inseguras, como voar."
Klein diz não saber como conciliar essa necessidade dos fumantes com a dos não-fumantes: "Talvez vôos separados, talvez um mecanismo tecnológico que impeça a ida da fumaça de uma parte do avião para outra". Ele também acha abusiva, a proibição, já comum nos EUA, de se fumar em qualquer parte dos locais de trabalho.
Apesar de tantos elogios ao cigarro e tantos argumento em defesa dos direitos dos fumantes, Klein nega com ênfase que seu objetivo seja incentivar o hábito de fumar. Ao contrário, ele diz querer desencorajá-lo.

"Cigarretes are Sublime" pode ser encomendado à livraria Cultura ( av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, tel. 011 285-4033)

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