São Paulo, domingo, 8 de maio de 1994
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'Dossiê Drummond' costura morbidez e lugares-comuns

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

A primeira página de "O Dossiê Drummond", do jornalista Geneton Moraes Neto, dá uma idéia do que o livro é:
"De repente, foi como se o chão lhe tivesse fugido dos pés. O verso do poema 'E Agora José?' se materializaram aos olhos de Carlos Drummond de Andrade (...) Derrubada por um câncer que começou no seio mas se espalhou pelos ossos, Maria Julieta, mãe dos três únicos netos de Drummond, saía de cena aos 59 anos de idade. Um poeta amador teria a tentação de perguntar: 'E agora, Drummond?' "
O próprio Geneton dá a resposta: "Agora, era ir para casa, cambaleante".
"O Dossiê Drummond" reúne uma entrevista que o autor fez com o poeta – parcialmente publicada no "Jornal do Brasil" em 1987 –, 45 depoimentos de personalidades e a transcrição de três fitas de conversas entre Drummond e sua namorada, a bibliotecária Lygia Fernandes, um caso extraconjugal que manteve durante 36 anos, até morrer.
Morbidez
Geneton descreve assim o encontro entre os dois: "Quem saberá dizer quando é que 'as antigas manhãs começaram a amanhecer de novo no peito do poeta (...)? Talvez as antigas manhãs tenham raiado já na chegada de Lygia à sala de trabalho no Patrimônio Histórico, no remoto 1951."
Geneton Moraes Neto é editor-chefe do programa "Fantástico", da Rede Globo. O que talvez possa explicar a falta de sobriedade de seu texto, para não falar no mau gosto na tentativa de criar um estilo com "efeitos poéticos", a sucessão de lugares-comuns e frases feitas em tom dramático ou mórbido.
"O rosto da filha única estava 'lindo, puro, sem rugas, juvenil', mas não, o coração despedaçado do poeta não iria procurar consolo nas palavras de Schoppenhauer, um filósofo entediado que morreu sentado diante de uma xícara de café, no final de setembro de 1860", escreve Geneton.
Talvez seja o background jornalístico dou autor que lhe permite esse estilo apelativo cujo excesso por vezes lhe atribui um tom de paródia voluntária: "A essa altura, o gravador já estava ligado. Eu não queria perder uma sílaba pronunciada pelo monumento. Não perdi", escreve o jornalista sobre a entrevista que fez com o poeta pouco antes da morte da filha.
Talvez ainda essa familiaridade com jornalismo fantástico que permite ao autor fazer, sem qualquer vergonha, cerimônia ou mal-estar, perguntas do tipo: "O que é que mexe hoje com o coração do poeta Drummond?" ou "Poeta: Deus existe?".
Há outras pérolas de Geneton, como "um búlgaro que nasceu às margens do rio Danúbio" (referência a Elias Canetti) ou "Morto Carlos, fazer o quê? Remoer a saudade, a ausência, o vazio. Desde então, o sentimento do mundo, em Lygia, é a saudade de Drummond" (sobre sua namorada após a morte do poeta).
Cegueira ou cinismo
É difícil saber onde termina a cegueira e começa o cinismo - ou o corporativismo. O fato é que o livro vem recebendo cobertura extremamente elogiosa da imprensa.
Uma justificativa possível seria defender o livro pelo valor documental, mas ao contrário do que alguns pretendem, não há nada de espetacular na entrevista feita pelo autor, nenhuma revelação bombástica, nenhum grande interesse. Para não falar nas conversas entre Lygia Fernandes e o poeta, que Geneton apenas reproduz, classificando-as de "fitas secretas".
O motivo aparente dessas conversas nunca foi a publicação. Há que soam como uma espécie de cujo afino em preservar sua vida privada tornou-se lendário.
"Você acha direito a pessoa tocar na casa do outro, à meia-noite para fazer qualquer tipo de conversa, entrevista, gravação, o que lá for?, pergunta Lygia. "Depende do tipo de conversa... Talvez... (risos)", responde Drummond. E a namorada: "Ah, seu bandido, você está é querendo... Se fosse para traçar uma menina você gostava, não é?
Há qualquer coisa de obsceno nesse livro, menos por ferir algum tipo de moralismo (a publicação foi de fato adiada por um ano em decorrência de ação da família do poeta) ou por "revelar" a intimidade da vida com a amante do que pelo oportunismo, pelo tom inevitável de picaretagem.
É curioso ver como as próprias respostas de Drummond a Geneton na primeira parte do livro tentam inultimente servir de antídoto ao mau gosto Kitsch que parece mover o jornalista . Além das máximas de sua própria pena, o autor decidiu ornar sua entrevista intercalando trechos de poemas de Drummond entre as respostas, como ilustracão.
"Nenhum poema meu entrou para a história do Brasil. O que aconteceu foi o seguinte: ficaram como modismo e como frases feitas na atualidade. "Tinha uma pedra no meio do caminho'e 'E agora José", diz Drummond.
Ou "foi seu ouvido que entortou", ou Geneton simplesmente não entendeu.

(Bernando Carvalho)

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