São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 1994
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50 telas de Van Gogh podem ser falsas

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

O século 21 vai começar mais pobre. O mundo terá menos 50 quadros de Vincent Van Gogh (1853-1890) que no século 20.
Isso é o que promete um time de curadores em Amsterdã (Holanda), encarregados de fazer um catálogo definitivo da obra do pintor para ser publicado no ano 2001.
Em entrevista à Folha por telefone de Amsterdã, um dos membros da Comissão Van Gogh (cujo chefe ainda não foi determinado), Louis Van Tilborgh, disse que pelo menos uma de cada 20 telas pintadas por Van Gogh ou é falsa ou tem autenticidade duvidosa.
"Infelizmente essa é a verdade. A função da comissão é pôr a obra de Van Gogh a limpo, custe o que custar –e vai custar", resume.
Tilborgh é um dos curadores do Museu Van Gogh em Amsterdã. O museu é que vai coordenar a pesquisa e edição do catálogo.
As primeiras vítimas divulgadas foram uma paisagem marítima, da Ny Carlsberg Glyptothek, de Copenhague (Dinamarca), e um auto-retrato do Museu do Belvedere, de Viena (Áustria).
Oficialmente, elas não são mais telas de Van Gogh.
Abalo sísmico
A melancolia de Tilborgh não se deve apenas à "perda" de algumas obras do acervo da humanidade.
Deve-se também ao fato de que a pintura de Van Gogh é tão característica, tão "sui generis" que todos pensavam que pudessem ajuntar: "E tão inconfundível".
Trata-se de mais um abalo sísmico na história do conhecimento artístico. Se existisse uma escala Richter que medisse isso, ela estaria chegando a seu pico.
O que acontece com Van Gogh aconteceu com outro gênio holandês, Rembrandt (1606-1669). Em 1968 foi formada uma Comissão Rembrandt com os mesmos fins: pôr a limpo a autenticidade de toda sua obra (leia texto abaixo).
Mas: a) Rembrandt não foi um pintor tão típico quanto Van Gogh; b) suas telas são consideravelmente mais idosas; e c) Van Gogh jamais teve discípulos, ao contrário de Rembrandt.
Certezas
"Ninguém pode afirmar muita coisa em arte", diz o especialista David Norman, do departamento impressionista da casa de leilões Sotheby's de Nova York.
Mesmo métodos científicos não podem dar 100% de certeza, lembra Norman.
"Além disso, tecnicamente não é impossível imitar um Van Gogh. Gauguin fez isso por esporte algumas vezes, ao que parece. O que é impossível é ser Van Gogh."
Com isso Norman quer dizer o seguinte: uma coisa é admitir que Van Gogh não é inconfundível; outra, achar que isso diminui sua obra de algum jeito.
Talvez aumente. A necessidade de elaborar um catálogo definitivo vai obrigar a um estudo aprofundado de sua obra.
É no que acredita Norman. Ele vem acompanhando o início dos trabalhos da Comissão e acha que "ele era mais que urgente".
Norman conta por que a paisagem da Ny Carlsberg Glyptothek e o auto-retrato do Museu do Belvedere tiveram autoria contestada.
"Ambas pertencem a uma fase menos, digamos, `radical' de Van Gogh", diz. A paisagem é de 1887 e o auto-retrato, de 1886; ainda não se sabe o verdadeiro autor dessas telas.
Essa fase menos radical vai até 1888, ano em que o pintor se mudou para Arles, na Provença (sul da França), onde se matou em 1890 (leia texto à esquerda).
"Entre 1888 e 1890", continua Norman, "Van Gogh revolucionou a arte, usando cores antes inexistentes ou consideradas vulgares. Foi um achado de gênio."
São dessa época "O Quarto em Arles", "Girassóis", "A Igreja em Auvers" e "Auto-Retrato com Orelha Cortada", por exemplo.
Norman diz que a autenticidade dessas obras é facilmente verificável. "Uma análise científica da pigmentação daria a resposta final", diz Norman.
"Em algumas, o olho é suficiente para perceber." Norman se refere às telas em que Van Gogh aplicou pinceladas em espiral, no sentido anti-horário. "Essas sim são quase inconfundíveis."
Dúvidas
Obras de antes desse período têm mais margem de dúvida porque expressam seja a influência do impressionismo (caso da paisagem e do auto-retrato), seja a da arte holandesa.
"O que foi identificado como suspeito na paisagem da Ny Carlsberg foi o uso de pinceladas mais longas que as que Van Gogh usava nos anos em que viveu em Paris (1886 e 1887)", explica Norman.
"Van Gogh usava pinceladas mais curtas, quase como se fossem pontos de cor", continua. "Ele demorou a conhecer e assimilar o impressionismo, acabou adotando mais um pós-impressionismo."
O caso do auto-retrato do Museu do Belvedere é mais complexo. "Ali o que os curadores perceberam foi uma diferença na composição da figura", conta.
"A relação entre ela e o fundo é muito acadêmica. Van Gogh sempre punha a figura em posição levemente oblíqua em relação ao fundo da tela."
Próximas vítimas
Norman acredita que não chegará a 50 o número de obras desautorizadas. Acha que a comissão exagera na previsão, mas diz que ela tem todos os instrumentos necessários para estabelecer um catálogo realmente definitivo.
Se 50 dos 900 quadros de Van Gogh são realmente falsos ou mal atribuídos, ainda se está por ver. Sete anos de ardente polêmica estão só começando. O fim-de-século soa cada vez mais interessante.

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