São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 1994
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Luz del Fuego fez sucesso sem talento

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Livro: Luz del Fuego, A Bailarina do Povo
Autoras: Cristina Agostinho, Branca de Paula e Maria do Carmo Brandão
Lançamento: Best Seller, 270 págs.
Quanto: 14,1 URVs
A dançarina e nudista capixaba Luz del Fuego (1917-1967) passou à posteridade como uma mulher sem talento que forjou o sucesso a golpes publicitários.
O recém-lançado romance biográfico "Luz del Fuego, a Bailarina do Povo" deseja demonstrar que ela é de fato um vulto da pátria e figura basilar do comportamento feminimo deste fim de século.
Três escritoras quarentonas e mineiras – Cristina Agostinho, Branca de Paula e Maria do Carmo Bandão – passaram os últimos quatro anos a pesquisar a vida de Luz del Fuego, pseudônimo de Dora Vivacqua.
Cristina começou dois anos antes e encabeçou as investigações. Em 1989, teve acesso ao arquivo da irmã da dançarina, Eunice Vivacqua Tiesenhausen, e ganhou uma bolsa da fundação Vitae. Em 1991, convidou as amigas.
"Nos entusiasmamos com a possibilidade de trabalhar no perfil de uma mulher que desafiou os preconceitos da época, ainda que de maneira intuitiva", diz Cristina, 44, advogada.
Enxegaram em Luz uma "mulher de vanguarda". "Ela é precursora da cultura pop e um modelo para as mulheres de hoje", diz Cristina. "Mas o que nos encantou mais foi a carga romanesca e trágica que sua vida continha".
Gravaram cem horas de depoimentos de amigos, familiares e rivais da artista.
Espécie de Madonna "avant la lettre", Luz viveu de chamar atenção com performances escandalosos. Só mais tarde criou a justificativa epistemológica para seus atos.
O livro conta de forma romanceada o percurso da artista sob um difuso pano de fundo do populismo getulista.
Entre o final dos anos 40 e começo dos 50, era capaz de tudo para chamar atenção em público.
Ficou famosa por seus números nas revistas do Teatro Recreio, do empresário Walter Pinto, em que dançava nua com jibóias se enroscando por seu corpo.
Seria tomada hoje por uma micro drag queen (tinha 1,50 metro de altura). Num dia de sol de Copacabana, apareceu nua sobre um carro de sorvetes.
Congestionou o trânsito no Viaduto do Chá em São Paulo porque decidiu divulgar sua revista fantasiada de Iemanjá: nua, com cabelos e pêlos tingidos de verde esmeralda, E assim por diante.
Uma mudança ocorreu a partir de meados da década de 50. Luz queria figurar também na ponta-de-lança intelectual.
Ocupou-se da teorização do movimento naturalista brasileiro. Conseguiu criar a primeira colônia nudista do Rio em 1948 e, dois anos mais tarde, fundar o PNB (Partido Naturalista Brasileiro). Em 1951, conseguiu da Marinha a cessão da Ilha do Sol, na Baía de Guanabara. Ali foi instalada a sede da colônia.
O livro não vai a detalhes de datas ou de fontes. As autoras se deixam levar pela narrativa. Fazem ficção com cenas como a do assassinato da atriz, a pancadas e facadas, por dois pescadores.
Luz se revela boa frasista. Uma de seus pensamentos: "Para a sede temos a água, para a fome, o pão, para a imoralidade, a nudez".
As autoras descobriram em sua pesquisa que Dora pertencia a uma família de intelectuais e políticos de Cachoeiro de Itapemirim.
"Aos 4 anos, ela participava dos saraus da turma modernista de Belo Horizonte. A casa de sua família ficou conhecida na época como Salão Vivacqua. Era frequentada por Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade", diz Cristina.
A autora diz que Luz del Fuego teve boa formação. Isso permitiu que se destacasse no meio das vedetes.
O atalho para a glória ela encontrou num livro. Descobriu que sacerdotisas babilônias dançavam nuas envolvidas em cobras. Adotou e treinou jibóias, que concluiu serem as menos perigosas.
Mesmo sem um miasma de habilidade para teatro ou dança (teve aulas particulares com Eros Volusia, a Isadora Duncan brasileira), se impôs no teatro de revista. dançava frevos, maracatus e maxixes sempre tomada por um "ideal de criação": "Levar ao delírio um público ávido, não apenas de foutés e cabriolas, mas de... sexo".
Luz não se limitava a querer ser uma teórica da dança. Escreveu dois livro: "Trágico Black-Out" (1947), um romance "noir" sobre a prostituta que se regenera ao se apaixonar por um leproso em pleno blecaute durante a Segunda Guerra, e a autobiografia "A Verdade Nua" (1950).
Cristina acha que a maior contribuição da biografia está em mostrar uma personalidade de moralista sob a pele da encantadora de cobras.
Esse é um dos pontos em que ela discorda do filme "Luz del Fuego" (1981), de David Neves, com roteiro de Aguinaldo Silva. "O filme cometeu uma série de erros de informação e se pautou pela mitologia em torno da prostituta".
A dançarina, segundo a autora, não comia carne nem permitia bacanais na ilha.
"Era uma mulher para os dias de hoje", analisa. "Mesmo sem talento, conseguiu eletrizar multidões. Foi um gênio do marketing".
A biografia deixa a impressão de que só a tramóia redime o eterno feminino. Luz era uma "truqueira" esperta. É provável que nos dias de hoje essa vamp ofídica fosse chamada de feminista.

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