São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 1994
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Maria Bethânia cinzela o cancioneiro brega

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Tudo no show da cantora Maria Bethânia –que fica mais duas semanas no Palace antes de se apresentar com os Doces Bárbaros em Londres, em 1º de junho– parece a princípio brega: cenário com lua, uma esforçada quase orquestra de mariachi (só que sem sombreiro) no palco, a aparição da cantora feito um "deus ex machina" estilo Xuxa.
Parece, não. É. Ao longo de uma hora e 40 minutos de show, Bethânia demonstra que o mundo é essencialmente uma esfera irregular e de gosto duvidoso.
Consegue provar que o público, a crítica, a música, tudo não passa de caipirice com "narizinho empinado", como ela gosta de dizer.
O público é bem mais velho do que o dos outros baianos e adora. Pode tirar a máscara e se reencontrar com os próprios sentimentos banais. Com a voz de contralto potente e a interpretação expressionista, Bethânia subtrai as poses. Toma a cena. Exibe resistência e só pára de cantar uma vez, para dar espaço ao grupo.
Uma intérprete com voz mais fraca se renderia à orquestra de dez músicos. Estes traem o esforço de levar a cabo os arranjos complicados do maestro Jaime Alem. A dificuldade e o esmero, porém, não revertem em qualidade.
Os arranjos soam inchados e irregulares. Ora uma música recebe tratamento sinfônico, ora outra de estúdio sertanejo. Atmosfera seresteira surge do nada (com "Lua Branca", de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, momento em que a cantora mostra toda sua capacidade de persuasão) com dois violões. Em seguida, os músicos atacam de batida Olodum.
O maior problema está no ânimo dos músicos. Eles parecem estar ali não para divertir o público, mas para cumprir horário.
Ainda bem que Bethânia supre a omissão. Vence a orquestra. Interpreta 33 canções, costurando-as umas nas outras como uma ópera ou um drama amoroso.
Começa com um lancinante "Fera Ferida" (Roberto e Erasmo Carlos), acompanhada por cordas, como na abertura da novela. Faz uma fusão para "Fé Cega, Faca Amolada" (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos) e logo pula para a canção "Eu e a Água"(Caetano Veloso).
Vai narrando uma história de frustração, satura o espaço com canções de Roberto e Erasmo Carlos. Exorciza as mágoas com músicas como "Adeus Bye Bye" (Guiguio-Juci Pita-Chico Santana).
Chega à catarse com "Emoções" (Roberto e Erasmo). A essa altura, as atenções todas já viraram bregas felizes. Gonzaguinha e Roberto Carlos podem passar por Beethoven e Brahms.
Bethânia domina a platéia porque alterna experimentação e romantismo sem dar tempo de os ouvidos passarem de um registro para outro. O nível culto se soma ao popularesco num resultado inquietante.
Quando se aproxima do cafona marisa-montiano, ela arranja um escape erudito. Incorpora um Caetano Veloso rápido e apeia os derradeiros narizes niilistas.
Bethânia converte o conceito de brega em arte. Cinzela-o até virar música pura.

Show: Maria Bethânia
Músicos: Jaime Alem (guitarra e regência), Daniel Garcia (sopros), João Coutinho (piano e acordeão), Adriano Giffoni (baixo), Reginaldo Vargas (percussão), Carlos Bala (bateria), Fernando Merlino (teclados), Márcio Mallad, Fernando Bru, Hugo Pilger e Yura (violoncelo)
Direção: Gabriel Villela
Iluminação: Maneco Quinderê
Produção: Carmela Forsin
Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, tel. 011/531-4900)
Quando: hoje e amanhã, às 22h, e domingo, às 20h
Quanto: de CR$ 20 mil (setor 5) a CR$ 90 mil (camarote)

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