São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Tecnologia depende da educação, diz economista

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Claudio de Moura Castro, 53, é um grande frasista. "O governo moderno não é o que faz, mas o que faz acontecer", escreveu esse economista do setor de recursos humanos do Bird (Banco Mundial) em um livro recém-lançado sobre deficiências da educação brasileira no mundo moderno da produção (leia resenha abaixo).
Na sua opinião, é urgente iniciar uma reforma da educação básica. A meta é fornecer a mais brasileiros as habilidades básicas, de ler e escrever a noções de ciência e tecnologia, sem as quais tornam-se inúteis as máquinas e os manuais da indústria atual.
Para isso, é preciso antes de mais nada vontade política. Sobretudo da parte dos empresários, os maiores interessados na qualificação da mão-de-obra e os que têm maior influência junto ao governo.
O resto, ou seja, um ensino de qualidade, seria "trivial": professores assíduos e competentes, livros, cadernos, quadro negro. "Difícil é melhorar o sistema educacional suíço", diz.
Castro apresentou suas noções pouco ortodoxas sobre educação e ciência no Seminário Internacional de Avaliação e Propostas para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico para o Brasil, em São Paulo, de 2 a 4 deste mês.
Estava em férias. Não representava oficialmente o Bird, onde se ocupa do ensino profissional em países como Rússia, Irã, Marrocos e Argélia. O Brasil é um "hobby", como a marcenaria.
"Estou naquela posição deliciosa de chegar e dar palpite, ir embora e não ver nada", brinca.
Leia a seguir por que, na sua opinião, o Brasil tem mais a aprender com a Coréia do Sul –"um país acusado de ter o pior tipo de relações particularistas"– do que com o neoliberalismo britânico ou o protecionismo indiano.

Folha - O Brasil tem um dos maiores programas de Qualidade Total (QT) no mundo, mas a qualificação básica do operário brasileiro é um desastre. Como entender essa contradição?
Claudio de Moura Castro – Isto reflete um diagnóstico correto e uma vontade política do empresário de não ser atropelado pelos vícios de um mercado protegido, seja por barreiras externas, seja por compadrismo governo-empresa. É a vontade de melhorar.
Por muito êxito que esse programa possa ter, uma barreira que ele vai encontrar é um operário que não dominou os códigos mínimos de ler, entender o que leu, identificar um problema com dimensão quantitativa e lidar competentemente com esse problema.
Folha - Dois paradigmas fora do Primeiro Mundo: Índia e Coréia do Sul. O que se deve extrair de lição desses países?
Castro – Há duas lições na Coréia. A primeira é que, quando uma coisa começa a dar certo, as outras também começam.
Folha - O que começou a dar certo primeiro, na Coréia?
Castro – Economia e governo estável. O Brasil deu um azar monumental quanto a governo.
A segunda lição importante é que, ao contrário do que se pensa, a Coréia era um país em que as decisões eram tomadas da pior maneira possível. Era um país acusado de ter o pior tipo de relações particularistas, de favoritismo.
Tudo isso que se fala hoje do Brasil estava presente na Coréia 30 anos atrás. O que não se pode esquecer é a disciplina e a persistência do oriental. O coreano é herdeiro de uma tradição chinesa de disciplina, de organização.
A Índia levou mais a sério a idéia de autonomia total na gestão tecnológica e se deu muito mal. É quase que uma caricatura do Brasil na tentativa de dominar todos os processos tecnológicos.
Folha - Isto apesar de ter uma excelente pesquisa acadêmica, em termos de Terceiro Mundo.
Castro – É essa excelente pesquisa que cria o lobby, a idéia de que é possível reinventar a roda quantas vezes for necessário.
O Brasil se deu muito bem, mas errou na mão quando não viu que era hora de abrir. É o caso da informática, que começou bem.
Folha - Mas ainda há alguns setores em que a Índia se dá muito bem, como software.
Castro – Sim, mas em compensação não conseguiram exportar nada mais, é um país que continua exportando pano e, agora, um pouco na área militar –apesar do baixíssimo custo da mão-de-obra e de ter começado muito cedo.
Folha - Outro país: Reino Unido. O sr. diz que o sistema de educação profissional estatal foi desmontado durante a era Thatcher. O neoliberalismo foi uma ameaça à competitividade da indústria britânica?
Castro – Minha impressão, acompanhando de longe, é a de que, ao se empurrar para as empresas o encargo de esse sistema e ao se esvaziar a participação do poder público, criou-se um vácuo. Passou-se a oferecer um nível muito mais baixo de formação profissional do que seria necessário para manter a competitividade da indústria britânica.
Possivelmente o país passou a oferecer formação profissional com grande eficiência. Só quem estava precisando passou a gerar formação profissional, mas ao mesmo tempo criou-se um déficit.
Folha - Em resumo, a formação profissional é uma atribuição do Estado ou pode ser repassada à iniciativa privada? Trata-se de uma questão ideológica fundamental.
Castro – Minha resposta é não-ideológica, pragmática. Nós temos hoje quase um século de formação profissional estruturada e não temos o direito de ignorar essa experiência.
Uma coisa é certa: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A questão é divisão do trabalho e parcerias. Cada país tem sua maneira, inclusive a partir de raízes culturais.
Nós sabemos que a pequena empresa tem enormes dificuldades em treinar. No que depender dela, não vai acontecer nada. É preciso portanto um sistema público que supra a necessidade de treinamento das pequenas empresas.
Folha - A quem deveria caber no Brasil a iniciativa e a responsabilidade de reformular o sistema de ensino: governo, empresariado ou intelectualidade?
Castro – Há uma responsabilidade dividida. Apenas os governos estadual e municipal operam as escolas, portanto toda a cobrança tem de ir em cima deles.
Cabe à sociedade civil em geral e àqueles que tiveram o privilégio de ser mais educados ser os agentes de cobrança.
E as empresas, como vítimas da má qualidade da mão-de-obra, teriam o maior interesse de ser os maiores cobradores, os mais ásperos e ácidos, sobretudo por causa de sua extrema competência para agir junto às diversas instâncias governamentais.
E a intelectualidade, obviamente, porque, se essa intelectualidade não percebe e não luta pela qualidade da educação, Deus nos livre e guarde, o Brasil está mal.
Folha - Quais seriam as prioridades para a recuperação do sistema educacional no Brasil?
Castro – O problema maior é criar na sociedade a cobrança séria de uma educação de qualidade. Outro é criar essa qualidade –a meu ver este lado é trivial.
Folha - Não parece.
Castro – É, é trivial. Para uma sociedade com o nível de desenvolvimento do Brasil, com a capacidade de mobilização organizacional para fazer a coisa bem feita, na escola de samba ou em pesquisa espacial, o problema é trivial.
A situação é tão ruim que o que precisa é ter sala de aula direitinho, professor que saiba ler e escrever, livro, caderno.
O lado bom da crise brasileira é que há problemas tão simples que podemos ter impacto a curto prazo. Difícil é melhorar o sistema educacional suíço.

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