São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994
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O predomínio do negro

FLORA SUSSEKIND
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qualquer exercício paisagístico parece estar sempre a um passo da impossibilidade. Basta pensar no seu esforço de fixação, e concentração num espaço restrito, daquilo que se apresenta necessariamente como fluxo, variação (luz, atmosfera, estações), e no seu movimento de delimitação e singularização, contraditório com o que há de ilimitado, indivisível, descentrado, na noção mesma de natureza.
"Constantemente, os limites autotraçados de cada paisagem", comentava, em 1913, Georg Simmel, "são frustrados e dissolvidos por esse sentimento, e a paisagem, separada violentamente, autonomizada, é, então, tomada pela obscura presciência desse contexto infinito". Tensão figurada belissimamente, na poesia de João Cabral de Melo Neto, no desejo de Anfion, diante da cidade de Tebas, que acabara de fundar, de reencontrar o deserto –"como/a um tecido que/ buscasse adivinhar/ pelo avesso".
Tensão inerente ao paisagismo que explica, em parte, o recurso frequente a ele numa obra como a de Cabral, marcada exatamente pela conjugação de pólos a rigor excludentes, como figuração e abstratização, descrição e narração, percepção espacial e consciência temporal.
E desde o "teatro do mundo" de "Pirandello 1 e 2", ainda dos anos 30, à "Marinha" onírica do primeiro livro, às vistas do Capibaribe de "`O Cão sem Plumas", "O Rio", e "Morte e Vida Severina", às secções "Do Recife, de Pernambuco", "Ainda, ou sempre, Sevilha", "Do outro lado da rua" e "Viver nos Andes", de "Agrestes", a livros voltados sobretudo para esses exercícios poético-paisagísticos como "Paisagens com Figuras" ou "Sevilha Andando", multiplicam-se as paisagens cabralinas. Ora dotadas de voz, como o Capibaribe em "O Rio", ora interlocutoras mudas, como a maré do Capibaribe nessa espécie de "diálogo a um" que é "Prosas da maré no Jaqueira", ora vistas em perspectiva aérea, como em "De um avião", ora de tão perto que o "Forte de Orange, Itamaracá" pode se converter numa simples mistura de ferro e musgo, ora unidas por idêntica corrosão, como nas "Paisagens com Cupim", ora sobrepostas, como a Catalunha e Pernambuco em "Duas Paisagens", ora submetidas a violenta transformação imagética, como a de Sevilha em mulher, em "O Profissional da Memória", ou laranja, em "Cidade Cítrica", como a de um jardim num diário íntimo, em "O Jardim da Minha Avó", como a do canavial, em "O Vento no Canavial", num "mar sem navios", "papel em branco da escrita".
Paisagens que talvez possam servir de guias privilegiadas para a compreensão de alguns aspectos fundamentais da poesia cabralina. Daí a escolha de uma delas, "Poema(s) da Cabra", de "Quaderna" (1960), e o exame de três dos seus recursos de construção –o ponto de vista, a cor, o tempo– como exemplares do método de composição de João Cabral de Melo Neto.
Há, em "Poema(s) da Cabra", onze secções, cada uma delas com quatro estrofes de quatro versos, e com dominância, do ponto de vista sonoro, das rimas toantes, habituais, como se sabe, na poesia de Cabral. Regularidade quebrada, de saída, pela separação de duas dessas secções, a primeira e a última, por parênteses. O que permitiu a Antônio Carlos Secchin, em "João Cabral: A Poesia do Menos", a interpretação do plural, sugerido, também entre parênteses, no título do poema, como a afirmação de que haveria aí "dois poemas num só".
Um deles composto pelas duas extremidades entre parênteses e marcado pela referência à paisagem pastoral mediterrânea, onde "não se vê um palmo de terra,/ por mais pedra ou fera que seja,/ que a cabra não tenha ocupado/ com sua planta fibrosa e negra". Já o outro poema, que iria da segunda à décima parte, funcionando como uma "viagem conceitual em torno do núcleo `cabra' ". Leitura possível e ancorada não apenas no recorte gráfico dos parênteses, mas, ainda, em certa dominância descritiva nos trechos extremos do poema, e reflexiva no seu interior.
Talvez se possa, no entanto, problematizá-la um pouco. Benedito Nunes, por exemplo, ao comentar o mesmo texto, parece observar esse "plural" sobretudo em função do seu processo imagético, encadeado por "duas séries de termos, uma negativa e outra positiva, que se vinculam ao mesmo núcleo semântico –o negro da cabra– desdobrado em atributos de sentido oposto, mas complementares", e que acabariam enfatizando uma "diminuição na passagem de termo a termo". Em direção ao pouco, ao inferior, ao gasto, ao pobre. Ao negro da ferrugem, da poeira. Mas também à pedra, ao "aço do osso". No que acabam por se aproximar o negro da cabra e o "corpo couro" do nordestino, as cabras do Mediterrâneo e as do Moxotó.
E parecem mesmo conviver, neste texto, duas formas de composição poética bastante características de Cabral. De um lado, a sobreposição geográfica, que faria tantas vezes tomando por base Espanha e Pernambuco, e, neste caso, une o Mediterrâneo e o Moxotó. De outro, os poemas –como "Psicologia da Composição", "O Cão sem Plumas" ou "Uma Faca só Lâmina"– pautados na "retificação interna da imagem", processo analisado não apenas por Benedito Nunes, mas por Luiz Costa Lima, em "Lira e Antilira", e João Alexandre Barbosa em "A Imitação da Forma".
O que parece chamar a atenção, porém, em "Poema(s) da Cabra", é o fato de cada um desses modos de expressão (sobreposição, retificação) estar voltado propositadamente para o objeto "errado". Usa-se o descritivismo geográfico nas duas secções-limite do poema, justamente quando se trata de conjugar dois tempos diversos: o da visão (presente) do Mediterrâneo, o da memória do Sertão. Descreve-se, figura-se, pois, o tempo aí. E, por outro lado, diante do que é figura, cor, desdobra-se, serializa-se, uma conceituação. Temporaliza-se, pois, ao contrário, o que, a rigor, seria do âmbito do instantâneo, da percepção espacial.
Mais do que suas divisões gráfico-semânticas, parecendo interessar, então, esse imbricamento das dimensões espaço-temporais do poema, que aponta para uma das conquistas fundamentais da escrita poética de João Cabral de Melo Neto. A de um tipo de poema, que, mesmo marcado por um impulso decisivo de visualização, de concretização, submete essa perspectiva espacial a um tensionamento extremo por meio de um trabalho constante com a narratividade, com formas diversas de temporalização, que vão de sucessivas desmontagens e redes analógicas de imagens ao emprego do "princípio da composição em série" (destacado por Haroldo de Campos em "O Geômetra Engajado"), de um verso discursivo às retomadas de uma mesma composição (vide os "P.S." aos "Estudos para uma Bailadora Andaluza").
Recursos por meio dos quais aproximam-se e contrastam-se contensão lírica e tempo épico. E consolida-se, ao lado do relato corrido como o de "O Rio", das pequenas histórias como as de "Crime na Calle Relator", uma forma descontínua de narratividade –a série–, responsável tanto pelos poemas emparelhados de "A Educação pela Pedra", quanto pela repetição temática de tantos "cemitérios" ao longo de sua obra, ou de tantas formas de morte em "Agrestes", quanto pelas cinco figurações da bailadora andaluza em "Quaderna", ou pelas variações em torno do negro em "Poema(s) da Cabra".
Aos tempos e espaços descontínuos do poema parece corresponder, a um primeiro olhar, no entanto, uma curiosa unidade de ponto de vista. Quem lê rápido "Poema(s) da Cabra" tem uma nítida impressão de impessoalidade descritiva. São muitos, aliás, os "se", as indicações de uma terceira pessoa meio indeterminada, que descreve, de fora, a vista e as formas que assume o negro de suas cabras. O que se mantém até a última secção do poema, quando aparece um segundo –e decisivo– centro de perspectiva. "O Mediterrâneo é mar clássico,/ com águas de mármore azul./ Em nada me lembra das águas/ sem marca do Pajeú", "Mas não minto o Mediterrâneo/ nem sua atmosfera maior/ descrevendo-lhe as cabras negras/ em termos das de Moxotó": uma súbita primeira pessoa, e que lembra, em vez de apenas descrever, quebra, com grande inteligência, à maneira do que faz Flaubert nas últimas linhas de "La Légende de Saint Julien l' Hospitalier", a aparente homogeneidade, o ponto de vista até então fixo do texto.
Assim como, no aspecto imagético, trabalha-se com uma série de dominantes, e no do tempo e do espaço, sobretudo com descontinuidades, não há lugar, no que se refere ao ponto de vista, para uma perspectiva lirico-subjetiva todo-poderosa. Daí a perspectiva dupla ("se" e "eu") que ordena "Poemas(s) da Cabra". Daí os três pontos de vista (de fora, do próprio rio, de Severino) com que se observa o Capibaribe respectivamente em "O Cão sem Plumas", "O Rio" e " Morte e Vida Severina".
Daí o interesse de Cabral, no ensaio sobre Miró, pelo seu abandono da perspectiva italiana, da exigência de um centro para o quadro, pela sua multiplicação de "quadros dentro de um quadro", obrigando o espectador "a uma série de atos instantâneos, a uma contemplação descontínua". E, ainda, coisa que procuraria fazer também, a seu modo, em tantos poemas, pela sua "luta contra o estático próprio da cor".
E, nesse sentido, "Poema(s) da Cabra" é uma de suas mais belas reflexões sobre a cor. "O efeito primário do preto", disse, certa vez, Paul Klee, "começa onde a natureza termina". Esta, de cara, a primeira negatividade, enquanto colorista, de Cabral: construir exatamente em negro sua paisagem mediterrâneo-nordestina. Escolha de cor que não chega, porém, propriamente, a surpreender quando se lembra as "flores pobres e negras", os "mendigos negros", a "terra negra", de "O Cão sem Plumas". Ou, de outro ângulo, se o que se tem em mente é a associação desse preto da cabra ao sol, à vida, ela não é também única na obra de Cabral.
Lembrem-se, por exemplo, a aproximação, em "Os Pólos do Branco (Ou do Negro)", entre branco e negro por "instabilidade de igual natureza", ou como cabelos negros se transformam num "farol às avessas" em "Sol Negro", ou a forma como a morte, no "Auto do Frade", aos poucos, perde a coloração escura, o "negro, de alcatrão", para transformar-se, via Malevitch, num "branco sobre branco", próximo ao "inferno polar" baudelairiano, ao "infinito branco" mallarmaico.
Negro, que não é noite, mistério, escuro ou funeral, e se repete incansavelmente em "Poema(s) da Cabra" na mesma medida em que se deseja inverter-lhe o sentido habitual. No que se poderia opor o texto de Cabral a um outro excelente emprego poético moderno de idêntica cor: "Predomínio do Negro", de Wallace Stevens. Aí, fora o título, sequer se fala em "negro". Ele apenas invade o poema gradativamente enquanto objeto de temor, anoitecer, e certeza, inelutável, da morte. Ao contrário, em Cabral, a repetição da cor parece convidar o negror a negar-se e advertir (como noutro poema, de Jorge Guillén) que "não é negror, e ilumina".

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