São Paulo, domingo, 22 de maio de 1994 |
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NOITE TOTEM Oliverio Girondo e a poesia da destruição RÉGIS BONVICINO
Os versos finais do fragmento "Noite Totem" ("...que pode ser a morte com seu demente celibato/muleta/e é a noite") inspiraram a reunião das três peças, que tematizam a noite como prefiguração da morte. O tema é representativo do livro que, segundo o crítico Gaspar Pio del Corro, opera por flutuações entre o significativo e o impreciso entre o conformante e o caótico, entre o limite semântico e o limite formal, que, ao cabo, coincidem com a atitude limítrofe do artista e do homem. Noite. Morte. Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges são os dois maiores poetas argentinos deste século. Representam – sobretudo a partir dos anos 30 – vertentes distintas e antagônicas no plano formal. O primeiro voltado para experimentações na linguagem sem nunca perder de vista horizontes semânticos, metafísicos ou existenciais. O segundo – um escritor em companhia no século 20 latino-americano – voltado para a elaboração de uma poesia neoclássica, moderna, porém, sem sentido de experimentação ou vanguarda. Um traço comum das duas poesias/poéticas é a enumeração caótica, que a elas empresta o "rasgo da modernidade". Se, em Borges, a enumeração caótica é controlada pela reflexão intensa e pelo uso de formas gramaticais, em Girondo aparece contraposta ao barroco, figurado em extensas complementações hipertróficas, que dilatam e até mesmo estruturam seus poemas. O poeta e ensaísta argentino Saul Yurkievitch arrola tanto Girondo quanto Borges entre os fundadores da nova poesia latino-americana ao lado de Cesar Vallejo, Vicente Huidobro, Pablo Neruda e Octavio Paz (Bairral Editores, 1973). A Girondo dedica um ensaio dos mais elucidativos. Yurkievitch considera "Veinte Poemas" (1922) e "Calcomanias" (1925) "libros de aprendizaje", tributários da estética ultraísta, onde é celebrada, por meio de gemas metafóricas e furor neologista, a urbe moderna. Talvez a este Girondo, anterior a "Persuasión de los Dias" e "En la Masmédula", tenha se referido Oswald de Andrade em sua crônica "Sol da Meia-Noite", de 1943, onde o brasileiro nomeou o argentino como "mosqueteiro de 22". Embora já bom poeta, não é este o Girondo dos limites da vida/linguagem. Observa Yurkievitch que, a partir de "Espanta-pájaros" (1932), se produz em Girondo uma mutação cada vez mais radical: sua poesia perde o tom otimista, evasivo, a euforia solidária em troca da regressão ao amorfo, ao larval, em decomposição, em alucinada desintegração. É Girondo experimentando o "avanço de sua própria inexistência", entrando, cada vez mais nos recintos da morte e se confrontando com o "nada opressivo", com o absurdo e a arbitrariedade do universo. É Girondo se confrontando, por outro lado, com a existência fantasmática da poesia ("...buscar o poema/(...)/entre epistílios da aurora ou ressacas insones de/solidão crescente/antes que se dilate a pupila do zero...". Yurkievich anota que "o problema expressivo de Girondo (sobretudo em "En la Más Médula") é extremamente contemporâneo: "reglar el desarreglo sin arregar-lo". Em outras palavras, representar a destruição por meio de construções verbais eficazes que não criem entre meio e mensagem uma heterogeneidade disparatada e debilitadora, comunicar o caos sem harmonizar, sem arranjar excessivamente os signos e sem extremar o grau de entropia para que não se perca a imagem estética. A cidade, celebrada nos primeiros livros, é agora rechaçada como "vida artificial", debilitadora e causadora de alienação. A poesia, que se aprisiona unicamente em estatudos literários, desprezada. A negação das instâncias livrescas vem acompanhada do impulso de instaurar o "vital intuitivo". O crítico Gaspar Pio del Corro sintetiza esta situação: "Girondo denuncia o extravio do signo histórico (no caso, o extravio das renovações da modernidade). A partir deste signo, deambula até o momento em que chega ("En la Masmédula") à filiação do signo telúrico; aí começa para ele um progressivo resgate da graça significante". Yurkievitch explica esta tensão do seguinte modo: "Há em Girondo um eixo de exaltação vital que opera uma reintegração fraterna ao cosmos, um regresso às origens não somente no sentido habitual de reafirmação do autóctone, de repulsa à civilização tecnológica, de repúdio à acumulação cultural. Mas do restabelecimento do vínculo com a terra, com o cordão umbilical, para alcançar o larval e o protoplasmático". Noite. Morte. Os três fragmentos ora apresentados são "Noite Totem", Alta Noite" e "Rada anímica". Sobre os dois primeiros escreve Saul Yurkievitch: "Em "Noite Totem" e "Alta Noite" a quietude corporal provoca a máxima mobilidade imaginativa. No sono rápido, no subsonho que é preâmbulo do vazio, "prefiguração da ausência", o discurso se transforma em decurso de associações erráticas, ilação liberada a obssessivas mitoformas, "a presenças semimorfas, a uma grisluz que avassala, desertando. O nada, ameaçador, tenso, agita a mente assaltada por visões nebulosas, de intuições larvadas (...). Até que o nada se converte em vértigo". A inegável vocação barroca dos três fragmentos, a complementação hipertrófica, que se revela nas sucessivas pseudodefinições de noite/morte em "Noite Totem" e "Alta Noite" e no ritmo repetivivo e encantatório de "Rada anímica", são assim explicados por Yurkievitch: "Paradoxalmente Girondo apela à mais ampla dizibilidade para dizer o nada." Em "Noite Totem", a noite/morte é estruturada com o tato. As muitas definições e as mãos "escarvando o incerto". É "'médium", mediação, meio, intuição, que esbarra no paradoxo: "grisluzes outras pálpebras videntes" - que vêem e não vêem a noite, e (então) deserta. Em "Alta Noite", há gongóricas conceituações da noite ("com seu animal dolente cabeleira de libido/seu satélite angorá) mas que, sem solução, reflui para ocas artérias, para o griscinza, para o silêncio. "Rada anímica" é o terceiro dos fragmentos aqui publicados. Rada quer dizer baía, enseada. Preferi, no entanto, manter a palavra rada no título, sugerindo a idéia de radar, de antena, de captação. O popular refrão de magia negra "abracadabra" é invocado para "neutralizar" a morte e seus compassos. A extinção, a perspectiva de inexistência (da condição humana, da poesia), são transformadas por Girondo em energia revitalizadora. Os poemas de "En la Masmédula" podem, por sua riqueza e singularidade, estimular a poesia brasileira contemporânea a se recolar num horizonte de invenção -formal, semântico, existencial. Nota: As três peças aqui publicadas integram o livro "Antes que se Dilate a Pupila do Zero", que reúne todos os fragmentos de "En la Masmédula" e outros poemas de Oliverio Girondo, com organização e tradução de Régis Bonvicino, a sair pela Iluminuras Texto Anterior: Crimes de "lesa-tradução" Próximo Texto: Girondo morou por seis meses no Brasil Índice |
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