São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 1994
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Correntes da história

FLORESTAN FERNANDES

A perspectiva historicista opera com a tendência hegemônica da história, como realidade e representação. Ela é, por isso, reducionista, quer lide com a dinâmica das partes ou do todo, com a metamorfose abrupta de gênese sincrônica ou com a evolução acumulativa de origem diacrônica.
O todo, reconstruído pelo salto singular imprevisto ou pelas mutações sucessivas variáveis, só aparece por acaso como a "unidade do diverso". Perdem-se, assim, nas sociedades complexas, particularmente nas sociedades de classes, as histórias simultâneas que se interpenetram.
Se se toma o Brasil de hoje, observam-se a olho nu três histórias interdependentes, de significado diferente na concepção do todo. Existe a denotação tida por principal –as realizações do Estado. Ele viabiliza imposições que provêm das classes dominantes e suas elites ou das instituições que conformam a "história oficial". O Estado assume o papel de protagonista ostensivo da totalidade da nação. Engrena-se, porém, com os que mandam. É, de fato, a sua lâmpada de Aladim. E realiza ocultamente a vontade coletiva das conciliações e reformas vitais para os de cima.
A essa "história oficial" exaltada correspondem duas outras histórias, em contraste maior ou menor. A história dos que mandam, mesmo divididos em facções, mas entrosados por fins econômicos e valores sociais da sociedade civil. Eles desfrutam da capacidade de difundir, através da dominação de classe, sua ideologia e suas mistificações sobre a neutralidade do "Estado de Direito".
Devido à crise social crônica, alternam opressão e repressão com expectativas de liberdade e de progresso. Destituídos de utopia, misturam confusamente promessas grandiosas erráticas, visando aplacar seu temor obsessivo da contraviolência incubada nos debaixo.
A terceira história emerge e se redefine pelo comportamento reivindicativo e de ruptura das classes subalternas, incluídas ou não na sociedade civil. Sua ideologia é transparente: intervir ou apropriar-se da ação do Estado e suplantar o terrorismo dissimulado dos privilegiados. E sua utopia consiste em dissociar a ideologia da utopia, fazendo desta a fonte da superação das misérias, iniquidades e exclusões sofridas. Graças à inexperiência no uso de técnicas sociais de dominação de classe e de participação do poder, enfrentam incapacidade relativa de preservar sua memória coletiva e de unir-se para lutar ofensivamente contra os antagonistas.
A característica da situação atual procede do ímpeto da história dos de baixo. Ela está deslocando os outros dois padrões de história, o que sinaliza o fim próximo da "pré-história" brasileira. A fórmula "Ordem e Progresso" desvanece-se como referencial, o que ilumina o cenário explosivo dos conflitos de classes e a emergência da nação como entidade inclusiva da história em processo. A reviravolta é lenta, mas inexorável. A "gentinha" penetra a sociedade civil e volta-se do presente para o futuro.

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