São Paulo, quinta-feira, 26 de maio de 1994
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Lecce é uma grande viagem ao barroco

JONATHAN GLANCOY
DO "THE INDEPENDENT"

Na Inglaterra, o estilo rebuscado conhecido como barroco foi uma questão ligada ao protestantismo; nos demais países da Europa foi a expressão tridimensional e voluptuosa do catolicismo triunfante. Exemplos magníficos de construções nesse estilo típico do século 17 são encontrados no sul da Alemanha, na Áustria, em Portugal e na Espanha. Mas o berço do barroco foi, e continua sendo, a Itália.
Sua origem está na cúpula da Basílica de São Pedro em Roma, foco arquitetônico do poder da Igreja Católica no século 17.
Ali Gianlorenzo Bernini (1598-1680) –poeta, pintor, escultor e arquiteto– deu início ao barroco executando um formidável e estonteante baldaquino de 29 metros de altura.
Foi ricamente esculpido sobre o trono de São Pedro, feito de colunas e bronze roubados do Panteão de Agripa.
Tal extravagância foi autorizada por Maffeo Barberini, mais conhecido como Papa Urbano 8º, amigo e patrono de Bernini. Foi esse o estilo que os católicos levaram aos seus domínios e colônias, a Santiago do Chile e às fronteiras dos Impérios Russo e Otomano.
Virtualmente todas as cidades da Itália tiveram influência barroca e, de norte a sul, esse estilo infesta o país tão livremente quanto a pasta e o azeite de oliva.
Vale a pena uma viagem a Turim só para visitar a surpreendente Capela do Santo Sudário (1667-90), na catedral San Giovanni, para conhecer um dos pontos mais extraordinários da ilha –o incomparável salão de baile do Palazzo Gangi, que data mais ou menos de 1750.
Visconti explorou-o memoravelmente ao seu filme "O Leopardo" de 1963.
No entanto, se se quiser escolher uma única cidade para mergulhar no barroco e tornar-se um rechonchudo querubim por um fim-de-semana, esta tem que ser Lecce.
A cidade oferece uma alternativa para uma Itália mais ou menos livre dos piores efeitos do turismo de massa –e é tão diferente das cidades renascentistas de Chianti e do norte quanto um queijo gorgonzola de uma ricota.
Lecce não foi "tematizada" e nunca será. Já foi transformada em cidade barroca há 300 anos.
É uma cidadezinha situada no salto da "bota", a uma distância conveniente de Roma. Hoje a auto-estrada termina a 40 km ao norte de Lecce, onde terminava a Via Appia há 1.600 anos quando Lupiae (seu nome latino) foi anexada por Roma.
Antes dos romanos a cidade era um posto avançado da Grécia, e antigas práticas religiosas gregas ali sobreviveram até a chegada das ordens religiosas da Contra-Reforma e suas igrejas barrocas, no século 17.
A edição de 1912 do Baedecker ("Sul da Itália") registra que "traços da influência grega ainda são abundantes no dialeto local".
Certamente, nas épocas em que a paisagem parece mais grega do que italiana, rituais pagãos sobrevivem. Lecce é uma curiosidade. Nas terras onduladas ao seu redor –vermelhos e ressecadas pela falta de chuva– cultiva o tabaco, alfarroba e o figo-da-índia.
No dia da festa de São Pedro e São Paulo (28 de junho), os cidadãos da vizinha Galatina dançam a frenética e antiga "tarantella" fora da igreja "desconsagrada" para precaver-se contra as picadas de aranhas nativas.
Em diferentes épocas Lecce foi governada por gregos, romanos, normandos, suábios e espanhóis (encontram-se influências do barroco espanhol ao lado do estilo desenvolvido no local).
O centro da cidade assemelha-se a um cenário, mais do que em outros lugares da Itália.
Atrás das fachadas teatrais das igrejas, palácios, seminários e prédios públicos, enfeitadas com anjinhos e cornucópias, escondem-se construções surpreendentemente simples. O que importa aqui é a aparência. Em nenhum lugar de Lecce se encontrará a fecunidade arquitetônica dos mestres barrocos –Bernini, Borromini e Berrettini.
O estilo de Lecce é provinciano. Segue esses mestres, mas também adota seus truques e detalhes.
As suas bases do barroco foram estabelecidas bem antes do completo florescimento desse estilo, com a chegada dos regimentos de ordens religiosas –jesuítas, franciscanos e teatinos– a partir de 1539 com o imperador Carlos 5º.
Arquitetura histórica
Ele fez da cidade a sua base militar durante a guerra com os turcos. Foram essas ordens que patrocinaram as igrejas barrocas mais rebuscadas.
Após a espetacular derrota dos turcos na batalha de Lepanto, em 1571, Lecce desabrochou e continuou a crescer por 150 anos. Nesse período transformou-se de fortaleza românica em barroca.
Estar no coração da cidade, na Piazza Sant'Oronzo, é sentir-se envolvido por uma armadilha formada pelas construções barrocas dos arquitetos e operários das antigas ordens dos cruzados.
No topo da coluna que domina a praça há uma estátua de Sant'Oronzo, bispo de Lecce no século 1, que Nero atirou aos leões.
A Basílica de Santo Croce mostra um trabalho decorativo em pedra que levou 150 anos para ser completado e que inclui 13 cariátides e inúmeras outras figuras mitológicas.
É o produto do trabalho coletivo de Cesare Penne, Francesco Antonio Zimbalo e Giuseppe Zimbalo –o mestre do barroco de Lecce– conhecido como "lo zingarello" (o ciganinho).
Com que prazer esses artistas-arquitetos do século 17 trabalhavam o arenito! Um material extremamente leve, dourado, macio que pode ser cortado facilmente com serra e pode até ser torneado. Isso explica as acrobacias encontradas nas construções de Lecce. Pare na praça para um café da manhã no Caffe Alvino (o café Guido e Figlio, na via Trinchese, é igualmente bom).
Enquanto toma seu café amargo, considere porquê o trabalho de restauração em Lecce parece nunca terminar. A pedra, embora excelente, é facilmente danificada pela poluição industrial. Lecce deve sua prosperidade (a maior parte do sul é ainda pobre) à indústria que se desenvolveu na época do "milagre econômico" italiano, nos anos 50. Desde então, a arquitetura histórica da cidade foi danificada.
Saindo da praça há um labirinto de ruas que o levarão de uma igreja barroca a outra –Santa Chiara, 2º Rosario, Sant'Irene, San Matteo –uma tentando ofuscar a outra. Todas ostentam cornucópias, anjinhos, entrelaçados, caveiras e radiosos corações sagrados.
O projeto mais extraordinário é o campanário –melhor seria chamá-lo minarete– da catedral do século 12. Foi acrescentado à construção original por Giuseppe Zimbalo durante a reforma do prédio entre 1662 e 1682. Com 70 metros de altura, o campanário sustenta pirâmides e diferentes artifícios barrocos, uns em cima dos outros, em quatro andares. É uma visão surpreendente e improvável de se esperar encontrar na Itália.
Em meio às igrejas há seminários e edifícios públicos, lojas e cafés, que suspiram sob o peso da pedra exuberantemente entalhada. A maior parte dos melhores trabalhos deve-se a "lo zingarello", mas talvez a Igreja de San Matteo (1667-17770), projetada por Achille Carducci, seja a apoteose da forma como Lecce aborda o barroco.
Vista do exterior, San Matteo promete o brilhantismo estrutural e a extravagância decorativa de Borromini; internamente, a igreja não passa de uma caixa enfeitada, de um teatro eclesiástico do final do século 17, feito com esmero.
Becos tortuosos
Se a exuberância dos trabalhos em pedra do centro da cidade tornar-se cansativa, enverede por qualquer das ruas laterais e você se encontrará em becos tortuosos, caiados, onde as construções de dois andares são tão despojadas quanto as do norte da África.
Ou pare por um momento, se for primavera (a melhor época para se visitar Lecce), no pátio do Seminário (Giuseppe Cino, 1694-1709) para respirar o perfume das laranjeiras.
Ou então tente a bela igreja normanda de Santi Nicolo e Cataldo. Lecce foi uma fortaleza normanda e o centro desta igreja de 1180 tem a simplicidade militarista característica desse estilo arquitetônico.
Outra alternativa é comer. Lecce é uma cidade pequena e a única maneira sensata de percorrê-la é a pé. Pode-se facilmente organizar um piquenique indo cedo durante a semana ao mercado –uma feira na Piazza Libertini. Há muitos degraus de pedra em toda a cidade onde se pode sentar para fazer um lanche.
O litoral, com rochedos que descem até a praia, fica a apenas 12 km e o transporte público é fácil (do terminal na Via Adua há ônibus para a praia em San Cataldo).
Cafés e bares
Por outro lado, Lecce é muito bem provida de cafés e bares que, como na maior parte da Itália, raramente desapontam. Pode-se experimentar a cozinha regional no Perbacco, na Via della Bombarde e a boa comida de cantina na Trattoria Gamberto Rosso, na Via Marina Brancaccio.
Há saborosas pizzas na Pizzeria Sonra, Piazza G. Congelo e "fast food" no Carlo Quinto, na Via G. Palmieri.
O turista tem tempo de sobra para almoçar em Lecce. Ela é uma cidade onde se respeita o intervalo para o almoço.
As igrejas ficam fechadas das 12h às 17h na maior parte do ano. Em certas épocas, nesse horário, Lecce parece tão vazia e silenciosa quanto uma pintura de Chirico.
Se você quiser dormir à tarde, o melhor é fazer reserva no Hotel Patria, um prédio em estilo barroco eduardiano em frente à Santa Croce. Tem quartos grandes e uma glória apagada que combina com o espírito da cidade.
Foi o escolhido por Baedeker em 1912. Ou tente o Hotel Risorgimento na Via Imperatore Augusto. O escritório de turismo (tel. 010-39-832-46458), sediado no Palazzo Sedile, na Piazza Sant'Oronzo, poderá indicar casas que recebem hóspedes.
Coleção macabra
É essencial para os fãs do barroco fazerem uma viagem de um dia partindo de Lecce, que relembra quão próximo o sul da Itália esteve para ser dominado pela crença muçulmana e não pela católica.
Um trem o levará em uma hora de Lecce a Otranto. Apesar da famosa novela gótica de Walpole, "O Castelo de Otranto" (1764), ela não é uma cidade onde se procuram lanças pontudas e armaduras que rangem.
Mas na catedral normanda há uma capela lateral onde se encontram armários barrocos e gavetas cheias de caveiras e ossos.
Essa coleção macabra –que parece ser a matéria-prima para os frisos barrocos– soma 800 corpos humanos.
São os restos mortais dos cidadãos de Otranto que, após um cerco de 15 dias pelos turcos em 1480, foram decapitados por se recusarem a se converterem ao islamismo.
Seu bispo foi serrado ao meio à antiga maneira turca, antes que os cidadãos encontrassem seu destino.
Por tudo isso Otranto é um lugar muito agradável –exceto talvez no verão, quando é muito quente e recebe um enxame de turistas.
Ali existe um pequeno porto de onde saem balsas para a Grécia, casas caiadas com gerânios nas jardineiras, uma igreja bizantina e, claro, o castelo.
Foi construído por Alphonso de Aragon, de frente para o mar, e vê-se pelo seu estilo que Horace Walpole nunca esteve ali, exceto talvez numa nuvem de ópio.
O barroco de Lecce poderá encorajá-lo a mergulhar ainda mais fundo na opulência desse estilo italiano tão influente.

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