São Paulo, sexta-feira, 27 de maio de 1994
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Filme vê Aids como aventura científica

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

\<FT:"MS Sans Serif",SN\>Matthew Modine (acima) interpreta o cientista Don Taylor, protagonista de `E a Vida Continua', de Roger Spottiswoode; ao lado, Carrie Fisher
Crédito Foto: Fotos Divulgação
Arte: QUADRO: CRONOLOGIA DA AIDS
Observações: COM SUB-RETRANCA
Erramos: 28/05/94

Neste artigo, dois nomes estão incorretos: Robert Gallo e Don Francis (e não Max Gallo e Don Taylor, respectivamente) são os personagens.
Filme vê Aids como aventura científica
Filme: E a Vida Continua
Produção: EUA, 1993
Direção: Roger Spottiswoode
Elenco: Matthew Modine, Alan Alda, Richard Gere, Lily Tomlyn,
Onde: a partir de hoje no Paulista 1

A Aids é um problema médico, antes de ser social. Partindo dessa constatação, Roger Spottiswoode escolheu como calço de "E a Vida Continua" as dificuldades que o inesperado surgimento de uma epidemia coloca para a medicina.
E não qualquer epidemia: quando os serviços sanitários se vêem diante de um surto de câncer em homossexuais, na virada dos anos 70/80, estão face a uma doença de que desconhecem a origem, a natureza e a cura. Em outras palavras, o começo, o meio e o fim.
Spottiswoode parte desse aspecto para de lá tirar todas as outras linhas que o compõem: o descaso do governo (Reagan é atacado especificamente), os preconceitos da imprensa (que, na falta de outra denominação, chamava a epidemia de "câncer gay") e da população em geral (em relação aos homossexuais), a atitude dos bancos de sangue, os conflitos entre cientistas que cuidam do assunto.
Mas a natureza do filme é essencialmente jornalística. Trata-se de seguir os passos dos cientistas do serviço de combate a epidemias dos EUA, em particular o dr. Don Taylor (Matthew Modine).
Tudo isso é uma história desconhecida, para os mais jovens, ou esquecida, para os que viveram aquele momento. Hoje, todos os conhecimentos adquiridos sobre o assunto, por insuficientes que sejam, parecem fazer parte da natureza das coisas.
Ao remontar essa história, Spottiswoode faz da Aids um objeto de investigação entre outros (poderia ser um crime, ou o regime de Somoza na Nicarágua etc.), o que anula parte das dificuldades relacionadas a seu objeto.
Contorna a questão menos por uma série de escolhas dramáticas (como fez Jonathan Demme logo a seguir em "Filadélfia") do que pela ocultação da própria Aids. Ou seja: todas as dores são vividas num primeiro momento não por um portador do HIV, mas por um cientista empenhado em combater o mal.
Apenas a seguir, e depois do terreno aplainado, "E a Vida Continua" entra nos dramas específicos dos diversos grupos atingidos pela Aids (homossexuais, hemofílicos etc.).
Se numa primeira abordagem estamos diante de um telefilme eficiente (foi produzido para a TV a cabo HBO), aos poucos "A a Vida Continua" vai ganhando a consistência de um trabalho de reconstituição histórica.
Esse aspecto não impede, entretanto, que o filme construa pontos de vista claros a respeito dos conflitos que enfoca. Assim, toma partido pelos cientistas do Instituto Pasteur, de Paris, contra o pesquisador norte-americano Max Gallo. Eles mantiveram durante anos uma disputa judicial em torno da descoberta do vírus HIV.
Também o ex-presidente Reagan é visto com pouca simpatia, não só por ter se esquivado da questão, como por destinar às pesquisas verbas irrisórias.
Mesmo esses partidarismos, no entanto, são informativos e não são apriorísticos. Formam-se à medida que o material se acumula. Dão conta menos de um preconceito localizado do que da atitude de retração dos humanos face ao desconhecido.
Nesse sentido, Spottiswoode faz jornalismo, no sentido em que informa e investiga. Mas submete a informação a uma interpretação das coisas.
Porque, no fim das contas, "E a Vida Continua" (um título inadequado) é sobretudo um filme sobre a extensão da ignorância do homem a respeito de si mesmo.

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