São Paulo, sábado, 28 de maio de 1994
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EUA choram a morte de ídolo reciclado

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Nós, brasileiros, andamos tão jururus em relação a nós mesmos, tão descrentes em nossa capacidade de construir afinal um país digno de sereno amor de nossa parte e de respeito por parte do resto do mundo, que escancaramos cada vez mais nossos portões à crítica e à condescendência do mundo inteiro.
Quando morreu Ayrton Senna, a mídia mundial foi aos poucos absorvendo essa eterna cantilena de horror a nós mesmos e montou sobre o mito do herói morto o mito do Brasil fracassado. A morte de Senna teria sido exageradamente chorada no Brasil porque só ele, desde Pelé, digamos, tinha dado certo nesta desgraça de país. A carência de sucesso e de glória tinha transformado um bom piloto e tricampeão de Fórmula 1 em uma espécie de herói mítico.
A razão básica desta versão da morte de Senna –não cansemos de repetir– reside em nós mesmos, na mídia brasileira, nas pessoas que a televisão entrevista no meio da rua, entre os pobres, que não têm o que comer, entre os ricos, que gostariam de exibir nos aeroportos do mundo um passaporte mais prestigiado. Por tudo isso, o enterro oficial de Ayrton em São Paulo criou nas revistas e telas do mundo um certo tom ridículo.
Vai daí, a Terra deu mais umas voltas, e, no país mais importante do mundo, que vive, desde a Primeira Guerra Mundial, uma espécie de superprodução crônica de heróis, morreu outro dia a viúva do armador e multimilionário grego Aristóteles Sócrates Onassis. O país inteiro se pôs a chorar. E a viúva Onassis foi enterrada em Washington, no Cemitério Nacional de Arlington, onde repousam os heróis da pátria.
É claro que, em Arlington, a morta, Jacqueline Kennedy Onassis, jaz ao lado do primeiro marido, John Kennedy, que durante 1.037 dias governou os Estados Unidos cometendo vários erros, mas dando à sua gestão um incontestável sinete de classe e elegância. Parte dessa classe foi criação de Jackie, como a chamavam carinhosamente os súditos (que na Inglaterra tiveram sua Jackie em Lady Di) e até hoje todos lembram ainda sua serena postura ao lado do marido meio femeeiro e agitado.
Lembram também seus grandes olhos, bastante separados um do outro para darem a impressão de envolver e fascinar para sempre quem os fitasse. Morto Kennedy em 63, Jackie parecia fadada a ser para sempre a fascinante viúva-noiva da América. Mesmo porque a morte trágica do herói-marido ocorrera praticamente nos braços dela.
Mas de repente, não mais que de repente, quando ocorria o ano de 1968, foi como se uma bomba terrorista de espanto e assombro explodisse na própria base da Jackie-monumento.
Ela casou com Onassis, um argentário que só tinha navios e contas bancárias a seu favor e que, para casar com Jackie, abandonaria uma mulher muito mais importante do que ela, a nova-iorquina Maria Cecilia Sophia Anna Karogeropoulos, ou, digamos logo, Maria Callas, cantora lírica incomparável, estrela do filme "Medéia", de Pasolini.
Se os espremessemos, os jornais americanos da época pingariam lágrimas. Um deles, me lembro, ostentou manchete que era um grito de dor: "Oh, Jackie, no!"
Tudo levava a crer que o dito casamento, cercado de desagradáveis histórias quanto as cláusulas monetárias envolvidas, derrubara o mito, enterrara para sempre a heroína que agora, no entanto, é enterrada, isto sim, em Arlington, ao lado de Kennedy, e comandando, nesta Casa Branca dos mortos, uma silenciosa mas eterna recepção.
Se isto não é precisar de heróis, ou heroínas, me digam o que seja. Vale até, nos Estados Unidos, a reciclagem de heroínas avariadas.
Morro Dois Irmãos
Feitas estas, espero que judiciosas, observações sobre o culto dos heróis no Brasil e nos Estados Unidos, volto, muito contra a minha vontade, a denegrir o Brasil. E denuncio: formou-se, aqui no Rio, uma perigosa corrente de opinião que prefere construir selvas de pedra no Cristo Redentor ou no Pão de Açúcar a imaginar que favelas possam infeccionar lugares "turísticos".
Desde 1970 um empresário, de nome Antonio Sanchez Galdeano, apresenta às autoridades e ao Patrimônio Histórico planos de construir um hotel e blocos de apartamentos na encosta do Morro Dois Irmãos. Pois depois de ser repelido por mais de uma geração de funcionários do Patrimônio e de prefeitos do Rio, chegou, ao que se diz, com o prefeito César Maia à inexplicável permissão para destruir uma das paisagens mais lindas e fotografadas do Rio: os penedos gêmeos que são o fecho da praia Ipanema-Leblon.
E a revoltante "desculpa" que tanto o prefeito como outras figuras cariocas dão à aprovação deste sacrilégio urbanístico é a seguinte: assim, favelados não poderão construir barracos ali. Por outras palavras, nem o Executivo municipal nem alguns dos cidadãos pretensamente esclarecidos do Rio sonham, sequer, com algum plano de educar, de dar eventualmente emprego e casa aos que acabam morando em favelas.
O único meio que lhes ocorre é construir prédios de luxo, que impeçam o aparecimento de barracos. Esquecem-se de que os pobres moram com leveza, erguem barracos facilmente desmontáveis, se alguém lhes oferecer uma oportunidade de viver melhor. Mas a favela de luxo que Antonio Sanchez Galdeano planejou e chocou durante um quarto de século vai durar mil anos, desfigurando para sempre a praia que é o topônimo brasileiro mais famoso do mundo: Ipanema.
Jamais gostei de jornalismo do tipo personalista, acusatório, mas tenho toda uma pasta de recortes sobre o Morro Dois Irmãos, e nessa pasta encontro ataques meus ao empresário Antonio Sanchez Galdeano. Não me alegra reler esses artigos. Mas por que é que Galdeano não se emenda? Há 25 anos ele intimida os moradores do Leblon com a ameaça de arruinar para todo o sempre a vista que se tem do penedo dos Dois Irmãos a partir da rocha do Arpoador.
Ele não pára de conspirar, olhos fitos nos lucros de califa que lhe advirão no dia em que entupir aquele pórtico da Floresta da Tijuca com um hotel de 600 quartos e não sei quantos prédios de apartamentos. A primeira recusa que lhe impôs o então DPHAN (Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) foi capitaneada por Afonso Arinos, e a partir dela várias outras vieram.
Espero que Galdeano tenha mais uma vez rejeitado, agora pelo IBPC (Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural), o sinistro e já malcheiroso projeto que arquitetos a seu serviço retocam aqui e ali, através dos anos, como "morticians" encarregados de manter o defunto com ar saudável.
Durante todos estes anos em que o ataco quando ele volta à carga nos Dois Irmãos, Galdeano, que tem uma companhia chamada Cap Ferrat Empreendimentos, só aparece nos jornais em duas situações: metido em negócios estranhos, como quando importava uísque escocês declarando ao fisco que pagava meio dólar por caixa de doze litros, ou quando oferece festas à magistratura local.
Nunca vi o nome dele apoiando alguma iniciativa de cunho social ou cultural. Mas suas festas a juízes e desembargadores fizeram e ainda fazem história tanto nos jornais puramente dedicados à gente fina do Rio, tipo "Beautiful Week", como nas colunas sociais em geral.
Naquela minha pasta de recortes encontro, por exemplo, em "O Globo" de 17 de outubro de 1987, um registro quase atônito de Perla Sigaud, que diz o seguinte: "Já é tradicional o jantar de Antonio e Carmen Galdeano homenageando a Justiça carioca. O deste ano foi o sexto. E reuniu cerca de 50 desembargadores".
Com esta sede de Justiça, Galdeano criou sua própria lei nos Dois Irmãos, morro, diga-se de passagem, que jamais devia ter caído na posse de um particular e que deve ser desapropriado e reincorporado à Floresta da Tijuca.
Até guardas armados Galdeano mantém ali, "para impedir a favelização", como ele próprio declara, régio, soberano. Se ele afinal conseguir permissão para erguer sua favela de concreto e mármore, o melhor é proclamá-lo, sem qualquer formalidade maior, prefeito do Rio. Por direito de conquista.

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