São Paulo, sábado, 28 de maio de 1994
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Claudio Abbado leva `Fígaro' à terceira dimensão

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A VIENA

O maestro italiano Claudio Abbado, 56, provou estar no auge anteontem, com a estréia de sua montagem da ópera "As Bodas de Fígaro" (Le Nozze di Figaro), do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791).
A produção é do Festival de Viena (Wiener Festwochen) e tem ainda três récitas: hoje, segunda e quarta-feira.
A première foi um sucesso. Abbado foi levado ao palco e aplaudido pelo público em pé, como um verdadeiro herói da batuta.
Ao longo de quatro horas de espetáculo (e nada como Mozart no original para notar quão longo se torna), Abbado regeu com discrição excessiva. É a forma que ele encontrou para se destacar ao avesso. Sua regência foi mais indicativa do que expressiva, embora tenha introduzido na partitura alguns detalhes de dinâmica não imaginados por Mozart.
A encenação, a cargo do diretor inglês Jonathan Miller, não podia ser mais discreta. Ele não caiu na última onda de encenar óperas com abordagem atualizada. Optou pela marcação de época, embora "Fígaro" seja um prato cheio para leituras politizantes.
Foi em "Fígaro" que a criadagem invadiu os palcos líricos da aristocracia européia. Nesta ópera, o libretista italiano Lorenzo da Ponte, se baseou na peça do dramaturgo francês Beaumarchais para discutir os limites do direito do senhor sobre os servos.
Mozart vivia na própria pele o problema –trabalhava para nobres– e carregou no humor ao compor a ópera, entre 1785 e 1786. Resultado: a montagem recebeu censura da própria pena do imperador José 2º logo depois da estréia, em 24 de maio de 1786.
O motor da ação está no "jus primae noctis", o direito à primeira noite, prerrogativa do senhor feudal. No caso, o conde de Almaviva quer levar para a cama a criada Susana, noiva de Fígaro, na noite do casamento.
Mozart teceu uma porção de cenas de disfarce e reviravolta com uma música avançada para o padrão operístico da época. Combinou quartetos, quintetos, septetos com várias falas simultâneas, antecipando a ópera romântica.
Ao mesmo passo que rompia com a aristocracia, Mozart quebrava as amarras do bel canto tradicional, que implicava revezamento de árias e recitativos. O único sinal de renovação na produção do Festival de Viena está nos cenários criados pelo inglês Peter J. Davidson.
Ele se utilizou do maquinário de alta tecnologia do teatro (que habitualmente apresenta o musical "Elisabeth", de Harry Kuper, a superprodução de maior sucesso em Viena em cartaz desde 1922) e forneceu uma tridimensionalidade inédita em palco de ópera.
Os seis cenários dos quatro atos da ópera giram sobre um eixo. Os cantores passam de uma cena à outra com o palco girando. Cria-se assim um efeito cinematográfico.
Para reforçar o glamour, Abbado só chamou astros vocais e deverá gravar com eles um CD para a gravadora alemã Deutsche Gramophon. O barítono italiano Ruggero Raimondi interpreta Almaviva. É o mais poderoso em cena.
Raimondi se especializou em papéis de conquistador. Ele foi o "Don Giovanni" no filme de Joseph Losey (1982) e do toureiro Escamillo em várias montagens de "Carmen", inclusive no cinema. Quase bateu Fígaro (interpretado pelo barítono italiano Lucio Gallo) na simpatia do público.
Na pele de Susana está a soprano inglesa Barbara Bonney, a favorita de Abbado, com quem gravou de "Wozzeck", de Alban Berg, a "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini.
Barbara é jovem e atua como atriz. Sua voz é tão escassa como graciosa e adestrada. É a primeira vez que Abbado enfrenta Mozart e nem por isso ele se deixou intimidar. É o todo-poderoso e, como tal, tem o "jus primae noctis" de todo repertório.

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