São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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A história literária como guerra santa edipiana

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

NELSON DE SÁ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Todo poeta forte é filho da semente de um enforcado. O ajuste de contas com a tradição, necessário para preservar a ilusão de uma identidade própria, leva o poeta a disputar a primazia com aquele que o inspira e limita –o precursor e pai de sua poesia. Exorcizar a influência e reverter a condição e pai de sua poesia.
Exorcizar a influência e reverter a condição de tardio, de repetidor, significa destronar o soberano, competir e conquistar seu espaço, substituí-lo.
Nesta luta de vida ou morte, o poeta forte é carrasco de si mesmo. Mata no outro de que provém um pedaço de si mesmo, estilhaça-o, para a partir de seus fragmentos recompor-se em nova e autofundada identidade. Seu objetivo, no limite, é tornar-se o pai de si mesmo.
É nestes termos de guerra santa edipiana que Harold Bloom, profeta da angústia da influência, concebe a história literária e interpreta a produção poética moderna em "Poesia e Repressão", volume final da tetralogia teórica que fundamenta seu "revisionismo crítico" (o primeiro, "A Angústia da Influência", e o terceiro, "Cabala e Crítica", já editados no Brasil).
Relendo a poesia pós-iluminista, romântica em sentido amplo, revendo o cânone e a linha evolutiva da poesia anglo-americana estabelecidos pelo New Criticism, Bloom combina leituras tão heterogêneas como Nietzsche, Freud e a Cabala judaica numa heresia crítica forte, centralizada no conceito da influência, que valoriza a imaginação romântica contra os que prognosticam o fim da arte.
No conceito de repressão, Bloom encontra a possibilidade de cruzar a noção romântica do sublime com o processo de sublimação freudiano. Casam-se a nostalgia romântica pela origem, o ideal mítico do reencontro com a inocência perdida, busca impossível, e a luta repressiva-defensiva travada pelos poetas contra a consciência da tardividade. A repressão se reconhece como processo fadado à contínua derrota, mas faz brotar das crises de influências uma reação capaz de alcançar o sublime.
É John Milton quem estabelece a linha divisória entre um passado divino e um presente secular, onde o acesso à Musa se complica. Seu fantasma paira sobre toda poesia posterior, um preposto de Deus, a figura do pai.
Contra uma tradição que julga conservadora, classicizante e anglo-católica –encarnada modernamente por Eliot–, Bloom propõe um novo eixo crítico, apoiado em valores contestadores, Protestantes e romântico-miltonianos. O poeta moderno tem seu paradigma no Satã de Milton, rebelde, solitário e orgulhoso na queda, um exilado cioso de sua origem divina.
Em Blake, o autor identifica a angústia de um profeta errante que se reconhece versão decaída do precursor, cuja voz forte reprime para não repetir, onde outros enxergaram a denúncia dos horrores da exploração humana citadina (como na imagem do limpador de chaminés em "London").
Em outro poema lírico do literalista da imaginação, "The Tyger", Bloom aponta a releitura da imagem bíblica do Merkaváh (a carruagem Divina), idéia fixa que perseguirá a poesia romântica em Keats e Shelley sob a máscara de Hyperion.
Menos do que alusões textuais, empréstimos temáticos ou constituição de "topoi", importa a Bloom a representação individual de uma angústia comum com que os poetas investem motivos como o do carro triunfante. os poemas são registros do que batizou como Cena da Instrução, conjunto de processos defensivos, retóricos e psicológicos, através dos quais o iniciante limita, esvazia e substitui a força do precursor em sua obra, buscando espaço pessoal.
O modelo para as "razões revisionárias" desta encenação do conflito, Bloom tomou à cabala, ela mesma fundada numa reunião de leituras interpretativas, desviantes.
Bloom mapeia esse enfrentamento em Wordsworth, o descendente poético mais forte da família miltoniana. A intenção é demonstrar como o poeta afirma de maneira autoconfiante seu isolamento, o poder da imaginação sobre o universo dos sentidos, mas ao mesmo tempo reprime a aspiração a um desafio ainda maior à natureza, que Milton representa para a poesia moderna.
A pergunta que os leitores de Bloom se fazem é qual seria esta "força antitética que poderia libertar o poeta da natureza e levá-lo a um mundo seu, compensando-o pela defesa do auto-isolamento com um isolamento ainda mais sublime"? O pressuposto idealizante não parece ter sido completamente enterrado e, nesta combinação de metafísica e empirismo que Bloom assumidamente faz, parece que a palavra final continua cabendo à primeira.
Transpostos para palcos americano, o sublime romântico, a angústia da influência e a Cena da Instrução encontram em Ralph Waldo Emerson seu teórico mais inspirador. O filósofo inaugura nova modalidade de repressão, tradução local no confronto com a tradição, que surge da necessária consciência de tardividade da cultura americana, e da reação retórica correspondente, afirmação mais arrogante de si mesma, voltada para a ruptura, o constante recomeço.
A profusão panteísta de Whitman e a contenção cerebral de Wallace Stevens continuam esta "linguagem transcendente", redistribuindo as peças no tabuleiro armado por Emerson.
Tanto o estruturalismo como a nova crítica e seu respeito pelo poema como coisa autônoma são vistos como enganos formalistas. Bloom recusa a metáfora do corpo para descrever um poema.
A crítica não deve nem buscar estruturas profundas que organizem a forma do texto poético, nem se transformar em uma descrição e deciframento de pseudomônadas, plenas de sentido, atribuindo ao poema um significado oculto e travestindo-se de ciência adornada de rigor metodológico.
O significado de um poema está na relação que estabelece com poemas que lhe antecedem e contra o peso dos quais seu autor se defende. Tanto a crítica como a criação são leituras interessadas da tradição, esvaziando-a, distorcendo-a, invertendo seus termos, em suma, desvios ativos e produtivos.
Como a crítica francesa mais recente e suas derivações americanas, Bloom dobra-se sob o peso do Nietzsche. Reconhece na reivindicação de verdade, autonomia e orginalidade de um texto a vontade de potência, tentativa de torcer retoricamente velhos discursos e apresentá-los com criação própria. Interpretar um texto é mapear sua estratégia retórica em confrontos com textos anteriores.
Mas enquanto os franceses, Derrida à frente, se enroscam nesta perpétua remissão de textos em eco, tornando inalcançável a origem e convertendo a crítica em jogo de palavras desconstrutivo também preso na rede da escrita, Bloom pretende estancar o movimento perpétua valorizando no poeta forte uma individualidade que se levanta e luta contra a dissolução de sua subjetividade numa cadeia abstrata de topos.
A imaginação romântico-moderna é o freio. Empenhados na elaboração de um contra-sublime que enfrente a tradição, poetas e críticos verdadeiros legam novos desafios àqueles que os sucedem, provocam leituras tão interessadas e criadoras como as de que partem.
Por trás dos labirintos retóricos que são os próprios textos de Bloom, desleituras de conceitos e imagens tomadas a fontes esotéricas, esconde-se uma profissão de fé na imaginação poética que tomou o lugar da Musa de Milton, da natureza de Wordsworth. Cabe ao leitor adotá-la ou perguntar-se se a repressão da história sob os confrontos individuais entre textos e poetas foi forte o bastante ou ela retornará, pronta a assombrar os efebos de Bloom.

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE é professor de teoria literária da Unesp

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