São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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O paraíso ainda está verde

MARCELO LEITE
ENVIADO ESPECIAL À JURÉIA

A serra da Juréia é pura magia, mas só permite acesso a pesquisadores e pessoas envolvidas em educação ambiental.
Muita gente está irritada com as regras da Estação Ecológica Estadual Juréia-Itatins, e não são apenas especuladores imobiliários. Existe até ambientalista que defende a transformação da Juréia em parque nacional, como o de Itatiaia (RJ), conservado e visitado desde 1937.
A Juréia tem lendas, história e uma paisagem tão deslumbrante quanto intocada, embora a maior cidade do país esteja a apenas 150 km em linha reta.
Poucas pessoas podem usufruir desse paraíso. Entre os privilegiados estão ambientalistas, pesquisadores e jornalistas. Com autorização do Instituto Florestal de São Paulo, eles podem circular por toda a área.
Os mortais comuns, se não se engajarem em algum programa de educação ambiental, têm de se contentar com três únicos pontos de acesso livre.
Os próprios moradores de Peruíbe, Iguape e praias vizinhas são impedidos de cruzar a reserva. Até mesmo para a tradicional procissão do Bom Jesus de Iguape houve restrições nos últimos anos (é grande a devoção pela imagem, que teria sido encontrada na praia por dois índios, no século 17).
Entre os irritados está Ernesto Zwarg Júnior, ex-vereador em Peruíbe. "O povo não se conforma de não poder passar há dois anos pelo rio Verde", queixa-se este homem devotado à paisagem da Juréia como a uma religião.
Com efeito, a vista do pequeno rio serpenteando até a praia, do alto da serra, é um convite ao panteísmo (segundo o qual só o mundo é real e Deus é a soma de tudo quanto existe).
Ironias
A ironia é que a existência da estação, portanto a preservação de 790 km² de mata atlântica, mangues e restingas se deve em grande parte à presença de espírito de Zwarg. Sem sua dedicação, dificilmente teria sobrevivido essa mancha verde, equivalente à metade do município de São Paulo.
Foi Zwarg quem pôs areia, em 1973, no condomínio para 70 mil pessoas que a imobiliária Gomes de Almeida Fernandes pretendia construir na área. O então vereador pediu o tombamento da área, paralisando tudo por cinco anos.
Outra ironia: o autor do projeto do condomínio era o arquiteto Jorge Wilheim, que se tornaria depois secretário estadual do Meio Ambiente (governo Orestes Quércia).
A autorização para a construção acabou saindo em 1978. Um pedido de vistas ao processo de Zwarg, porém, adiou o empreendimento por mais um ano e meio.
Quando tudo parecia perdido "chegou a cavalaria", como diz o ambientalista João Paulo Capobianco, da Fundação SOS Mata Atlântica. No Dia Mundial do Meio Ambiente de 1980 (5 de junho), o então presidente João Figueiredo anunciou a construção de usinas nucleares na Juréia.
As usinas acabaram não saindo, mas na mesma penada o governo federal criou uma área de preservação de 220 km² em torno dos futuros reatores atômicos.
Um ativo movimento conservacionista conseguiu por fim consagrar a área com um decreto estadual. Depois ela foi aumentada para os 790 km² atuais, com a incorporação da vertente da serra dos Itatins (mais para o interior).
Despraiado
Não se pode dizer que o final tenha sido feliz. A rigor, não houve sequer final. Mesmo linda, a Juréia ainda é um grande problema:
Apenas 12% de sua área estão efetivamente sob controle do governo estadual, ou seja, foram desapropriados e pagos;
Cerca de 150 processos de desapropriação estão em andamento (68% da área);
CR$ 1,2 bilhão foi destinado a desapropriações, mas não repassados para a Secretaria de Meio Ambiente.
Há cerca de 120 pontos vulneráveis a caçadores e invasores no perímetro da estação;
São 70 os funcionários encarregados de guardá-la, quando o ideal seria 200.
Para complicar, há os conflitos entre administradores e moradores. O maior foco de problemas esta no núcleo do Despraiado, onde vivem 200 a 340 famílias da Juréia.
As queixas são muitas: veto à reforma da estrada (sob chuva, só passam caminhões), burocracia para abertura de roças, problemas frequentes com a Polícia Florestal por causa da caça e das extração do palmito juçara.
"Roça é direito nosso", afirma José Amarante Peixe, líder do Despraiado. "Toda a restrição cai em cima de nós. O governo só desapropriou no papel, mas as restrições ele implanta. Nós soubemos preservar isto aqui, merecíamos um pouco mais de consideração."
Para "seu Peixe", governo e ambientalistas estão do mesmo lado –contra os caiçaras. Ao ouvir de Capobianco, da SOS, que a ONG (organização não-governamental) admitia que se reformasse a estrada, desde que fosse montada uma cancela, disparou: "É ou não é um campo de concentração?"
Os ambientalistas acusam esses políticos de defender interesses de especuladores imobiliários. Ainda segundo eles, muitos dos habitantes da estação ecológica são na verdade invasores, que só não foram desalojados pela especulação por que a área foi protegida.
No tumulto dos interesses contrariados, a voz do insuspeito almirante Ibsen de Gusmão Câmara (um pioneiro do preservacionismo no Brasil, hoje na reserva) esfria o debate: "A Juréia jamais deveria ser uma estação ecológica, mas sim um parque nacional".
Capobianco, da SOS, é contra. Ele diz que a figura de parque nacional não resolve o problema da população local, uma vez que não prevê uso da terra, só visitação.
Na legislação atual, mais adequada seria a "área de proteção ambiental" –mas aí não há desapropriação. Ideal seria uma "reserva ecológico-cultural", só que essa modalidade ainda está por ser criada (o projeto do Sistema Nacional de Unidades de Conservação parou no Congresso).
Quanto a desmembrar só o Despraiado, Capobianco diz que não está nem a favor nem contra. Tem medo do precedente. "Minha preocupação é com o efeito disso sobre a estação como um todo."
O jornalista Marcelo Leite viajou à serra da Juréia a convite das fundações Konrad Adenauer e SOS Mata Atlântica

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