São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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Ossos vieram da África

CLAUDIO JULIO TOGNOLLI
DO ENVIADO ESPECIAL A PIRACICABA

O nó atado por Tiradentes começa a ser afrouxado numa urna negra de madeira, de 30 x 50 cm, com o aspecto de um caixão, com os despojos de três inconfidentes.
Cinco pesquisadores começam a perturbar a castidade da urna quando o cirurgião dentista legal Eduardo Daruge, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, levanta o tampo e descobre um jornal amarelecido sobre um crânio.
A partir daí, os peritos iniciam sua missão: separar os ossos misturados nas urnas, checar se são realmente de três membros da Inconfidência Mineira, e reconstruir-lhes os rostos.
O primeiro despojo reunido já é considerado autêntico, embora ainda não se saiba de quem seja: se de Domingos Vidal Lage, João Dias da Mota ou José Resende Costa –todos os três cúmplices de Tiradentes e cujos restos mortais teriam sido depositados na urna.
A pesquisa em torno destas primeiras ossadas dá início a um ambicioso projeto de reconstituição de outros 14 despojos inconfidentes, hoje depositados no Museu da Inconfidência em Ouro Preto, entre eles o do poeta Tomás Antonio Gonzaga. O objetivo é revelar a configuração, até agora desconhecida, dos rostos dos rebeldes.
No laboratório de Piracicaba, a pesquisa assume contornos sobrenaturais. Numa sala ladrilhada, e ao lado da urna inconfidente, há uma audiência silenciosa de crânios. São ossadas de pessoas mortas misteriosamente, em todo o Brasil, que esperam a sua identificação (ali já repousou o mais famoso deles, o crânio de Mengele).
Recibo histórico
O primeiro ato de todo esse rito pericial ocorreu há um mês, quando se resgatou da urna o pedaço de jornal de cinco centímetros quadrados. A data do fragmento de jornal acrescentou um novo dado à pesquisa: 7 de setembro de 1934. Naquele dia, alguém manipulou e embrulhou os ossos.
A data do extrato infunde ânimo aos pesquisadores de Piracicaba. O jornal é um recibo histórico que revela que a urna está inexpugnável desde 1934. Este fato reforça a hipótese de que ali dentro estariam mesmo os ossos dos inconfidentes Domingos Vidal, João Dias da Mota e José Resende Costa.
Os três estavam sepultados na Vila do Cachéu, na África, numa cova rasa. Por determinação do encarregado da colônia de Guiné, major José D'Ascensão Valdes, e a pedido do cônsul do Brasil em Dakar, João Batista Barreto Leite, foram exumados em 2 de novembro de 1932. Só puderam ser encontrados porque uma índia chamada Micaela da Costa, de 80 anos, havia herdado de família as coordenadas geográficas da cova.
O pedido do resgate desses despojos havia sido feito a Getúlio Vargas por um velho amigo da família do presidente, o poeta e historiador Augusto Lima Jr.
Ao próprio poeta outorgou-se a tarefa de resgatar as ossadas, num ato revestido de solenidade por idéia de Getúlio Vargas. O navio Bagé foi à África levando o poeta Lima Jr. E voltou ao país exibindo um dos desejos de Getúlio: o ideal libertário da Inconfidência colando-se ao da "república" varguista.
Bolas de bilhar
Os ossos dos três inconfidentes chegaram ao Rio de Janeiro em 21 de abril de 1936. Cinquenta e sete anos depois, em 8 de junho de 1993, a urna é mostrada por Rui Mourão, diretor do Museu da Inconfidência em Ouro Preto, aos pesquisadores Nelson Massini e Eduardo Daruge, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba.
Na primeira manipulação em Piracicaba, os esqueletos estão misturados com pedras, terra, duas pequenas barras de ferro oxidado e alguns fios de cabelo. Restam poucos ossos inteiros, e só os fêmures ainda guardam intactas as conexões com as rótulas –que parecem bolas de bilhar seccionadas.
O que se sabe dessas ossadas até agora, pela crônica histórica, é que Domingos morreu aos 32 anos, em 1793, João aos 49, no mesmo ano, e Costa aos 78, em 1798. Os três haviam sido beneficiados por uma comutação da pena capital.
Em 24 de junho de 1792, os três vão degredados, no navio Golfinho. Os inconfidentes ficaram pouco tempo na Guiné Portuguesa. Acabaram sendo enviados para a Vila do Cachéu, onde teriam morrido de epidemias mal-curadas.
Desde 1980 o Museu da Inconfidência tenta saber se as ossadas são dos três inconfidentes. O diretor do museu chegou a consultar antropólogos americanos para o serviço, mas optou pela equipe de Massini pela fama mundial que adquiriram, desde o caso Mengele.
Massini diz que o momento culminante do trabalho vai ocorrer quando, finalmente, as 14 ossadas puderem estar dispostas no Museu da Inconfidência –reconstituídas, com um computador a revelar a história e as etapas da pesquisa científica desenvolvida. "Será uma lição inesquecível", prevê.

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