São Paulo, segunda-feira, 6 de junho de 1994
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O elo frágil

FLORESTAN FERNANDES

Discute-se com ardor como "melhorar" a Constituição de 1988. Perdeu-se, com isso, muito tempo no Congresso Nacional. Primeiro, a celeuma girou em torno do artigo 3º do Ato das "Disposições Constitucionais Transitórias". Depois, os partidos dividiram-se no "como fazer" e as pressões externas jogaram uns contra os outros interesses inconciliáveis. Um regimento interno infeliz ignorou que a democracia só existe quando se respeitam as minorias. Foram esmagadas como pulgas.
O governo, por sua vez, esperou demais da "reforma constitucional" e oscilou entre dois extremos negativos –ou açulou e barganhou com a maioria parlamentar ou procedeu como se estivesse entrevado. Por sua vez, os que mandam aguardavam milagres. O relator, deputado Nelson Jobim, viu-se confinado a um espaço sufocante. Os "contras" surgiram como consequência natural dessa situação. E quando se dispuseram a cooperar, deram com a intransigência dos que pensavam empalmar o poder absoluto.
Deixando-se a parte outros obstáculos, pessoais e organizativos, a verdade subiu à tona cristalina. A ausência do povo, de sua participação e de expressões lúcidas dos partidos firmemente fincados no solo histórico, tirou do Congresso Nacional as premissas de fonte de poder, originário ou derivado.
A sociedade civil ainda não forjou uma cultura cívica capaz de converter o Legislativo no elo entre as classes sociais, os partidos e a vontade popular. Como as "reformas" seriam arranjos entre os de cima e concessões parcialmente articuladas a certos setores das classes subalternas e das classes médias, faltou o necessário consenso para realizá-las. Só por ficção partidos, deputados e senadores poderiam encarnar as tendências fortes da consciência coletiva, arraigadas ao solo histórico.
É interessante como chegou rápida a demonstração dessa realidade. A CPI da Corrupção serve de exemplo. Ela apontou alguns culpados, a serem submetidos a julgamento político. Uns se adiantaram e saíram mansamente de cena; outros percorreram a via-crúcis. Dois casos são paradigmáticos: os de Ibsen Pinheiro (ex-presidente da Câmara, com desempenho marcante em suas complexas tarefas) e Ricardo Fiuza (líder do PFL, político hábil e ousado). O último configura o caso típico.
No relatório de acusação, o deputado Hélio Bicudo houve-se com brilhantismo e objetividade, o que não tolheu a absolvição. Patenteou-se ostensivamente que o Legislativo não se desvencilhou do clientelismo e da fisiologia, dos partidos bitolados pela mesma lógica. Liberado, Ricardo Fiuza foi enaltecido como o político emblemático dos mandões tradicionais.
As inconsistências da Constituição de 1988 não poderiam ser sanadas por uma "reforma". Os moldes estão incrustrados na sociedade civil e no Estado existentes. A reforma social ainda precede à reforma do Estado e, portanto, à passagem da Constituição da democracia restrita para a da democracia de participação ampliada. A Constituição funciona como um biombo, ocultando o que vai casa adentro, da sala de visitas à cozinha, enquanto não se construir uma sociedade nova.

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