São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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O veto necessário

EDUARDO RIBEIRO CAPOBIANCO

Nos últimos 12 meses, as concorrências públicas vêm se desenrolando em um clima de abertura. A Lei de Licitações e Contratos, sancionada há um ano pelo presidente Itamar Franco, contribuiu para que as licitações se realizem em clima de concorrência e liberdade de participação.
Para tanto, foi decisivo um veto imposto em junho de 1993 pelo presidente, suprimindo do texto da lei a exigência de que uma empresa, para se habilitar a uma concorrência, tivesse que apresentar comprovação de haver realizado obra ou serviço semelhante, o chamado atestado de capacitação técnico-operacional.
Ao vetar esta exigência, Itamar Franco assegurou a participação democrática de maior número de empresas nas licitações públicas com resultados positivos amplamente divulgados pela imprensa.
Por exemplo, uma construtora brasileira de porte médio acaba de vencer uma licitação para a instalação de duas rotas do sistema submarino de fibras óticas. Trata-se de conquista em uma das áreas tecnologicamente mais avançadas do mundo.
É importante observar que a concorrência foi ganha por uma construtora sem experiência anterior em fibras óticas. Ela contratou profissionais experientes e conseguiu vencer poderosas empresas multinacionais desse setor, oferecendo o serviço pelo melhor preço e com a qualidade exigida pelo licitante.
Esse tipo de avanço, entretanto, está em risco desde que o Congresso reintroduziu a exigência de atestado técnico-operacional no Projeto de Conversão à MP 472, aprovado em 12 de maio, que alterou a Lei de Licitações e Contratos.
O projeto tem prazo para ser sancionado até as 24h de hoje (8 de junho) pelo presidente da República. Pelo projeto, para participar de uma concorrência pública, a empresa precisará apresentar atestado de que já executou 50% de obra ou serviço semelhante.
Essa exigência está no inciso II do parágrafo 1º e nos parágrafos 7º, 8º e 9º do artigo 30 do Projeto de Conversão. Se esses artigos não forem vetados, a construtora mencionada acima não poderia participar da concorrência, que acabaria sendo vencida por uma empresa com uma tecnologia não tão moderna e a um preço menos vantajoso para o Estado.
Não se pode exigir da empresa atestado de experiência prévia em áreas tecnologicamente inovadoras. Justamente por ser uma área de ponta, é absurdo se falar em experiência prévia.
Em áreas avançadas em que se começa a consolidar um novo conhecimento tecnológico, a competição entre as empresas acabará se tal atestado for exigido: qualquer concorrência sempre será disputada pelo mesmo grupo das que chegaram primeiro.
O privilégio de participar desse grupo inibirá mais inovações tecnológicas. As poucas concorrentes habilitadas tenderão a formar um cartel. Elas se aproveitarão da pouca oferta para superfaturar as obras. Daí para a corrupção basta dar um passo.
Faz menos sentido ainda exigir da empresa atestado de experiência em áreas amplamente conhecidas, como hoje são os serviços de engenharia.
O caso da hidrelétrica de Segredo, no Paraná, demonstra como é falso o argumento de que uma obra pública só pode ser feita por empresa com atestado de capacitação técnico-operacional.
Para construir Segredo, um grupo de médias empreiteiras se uniu em consórcio. Contratando profissionais e técnicos experientes, essas construtoras ofereceram um preço, tirando as devidas proporções, equivalente à metade do preço de construção de Itaipu. Resultado: o consórcio das médias desbancou as megaempreiteiras que pretendiam cobrar muito mais.
Caso a lei exigisse o atestado de capacitação técnico-operacional, o administrador inescrupuloso que quisesse manipular o resultado de uma licitação faria pacotes de obras perversos.
Por exemplo, para a construção de uma rodovia, concentraria todas as obras (terraplenagem, pavimentação, túneis, viadutos etc.) em um único pacote, em vez de dividi-las por trechos.
Somente uma megaempreiteira, com a qual seria feito um acerto prévio, conseguiria comprovar a execução de 50% de todas essas obras e ganharia a licitação.
A exigência desse atestado também levará à formação de setores estanques e cada vez menos competitivos.
Uma empresa com experiência em obras de telecomunicações não poderá participar de uma concorrência do setor elétrico.
Se o governo voltar a priorizar o setor elétrico, poucas empresas estarão habilitadas e os preços das obras explodirão. Já se o governo decidir colocar em segundo plano determinado tipo de obra, as construtoras correspondentes não poderão migrar para outro setor e serão destruídas.
Os defensores desse atestado, que na verdade querem limitar as concorrências públicas a um restrito grupo de empresas, argumentam que o Estado estaria melhor garantido se entregasse as obras públicas às empresas que demonstrem experiência.
Esse argumento, que na verdade é um sofisma, não procede na esfera da Lei de Licitações e Contratos.
Em primeiro lugar, pela Lei de Licitações e Contratos, o Estado estão suficientemente garantido. Ele pode exigir que, na assinatura do contrato para a execução de uma obra pública, a empresa ganhadora da concorrência ofereça uma garantia financeira que pode chegar a 5% do valor da obra.
Em segundo lugar, o Estado não paga obras e serviços à vista, mas escalonadamente e somente após a execução de cada etapa. Essa execução é aferida por fiscalização.
No caso de a empresa não executar o que está previsto no contrato, o Estado dispõe de um poderoso arsenal de punições, desde a rescisão do contrato até bloqueio financeiro.
No caso de atraso ou não execução da obra, estão previstas penalidades como multas, suspensão de participação em qualquer licitação por até dois anos e declaração de inidoneidade.
Portanto, o Estado está mais do que garantido pela lei contra aventureiros. Espera-se que o presidente Itamar Franco, coerente com a atitude que tomou há um ano, vete novamente a exigência de atestado técnico-operacional em nome da empresa. A administração pública pode e deve manter o espírito democratizante da Lei de Licitações e Contratos, que acabou com as restrições à participação nas concorrências e inibiu o dirigismo e a corrupção.

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