São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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Soneto da delicadeza perdida da bola

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

Meus amigos, meus inimigos, vendo o Dunga como capitão e vendo tanta gente boa pensando que ele é um dos únicos jogadores indispensáveis para a seleção, verifico que este país mudou muito.
Ainda outro dia, em Paris, uma menina que bate um bolão –no bom sentido, é claro– dizia sem constrangimento que precisamos de dois cabeças-de-área e um deles, claro, Dunga, o impávido colosso.
(O futebol é como a mulher; fala-se muito mas ninguém entende).
Há um tempo atrás o botafoguense Waltinho Moreira, como diz o João Gilberto, declarou ao corintiano Wagner Carelli que este era o país da delicadeza perdida. Dunga, sua perfeita tradução.
Agorinha –até os diminutivos o Brasil perdeu– mesmo, certas reaparições por aí nos lembram da delicadeza perdida. As TVs, os vídeos rememorativos, nos mostram a história de outro futebol.
Alguém com ar amigo interrompe o meu sempre digno almoço no Carlino para perguntar: e o Didi? Ali estava um brasileiro nostálgico da elegância, do cavalheirismo, do dandismo no futebol.
Ouço uma pessoa encantadora recitando Fernando Pessoa, que nos 70 foi uma espécie de beabá não só poético, mas existencial. Viver pressupunha a poesia cotidiana. E como haveria bola sem arte?
Sai agora a obra completa do Murilo Mendes. Lembro que a gente dava até nome de personagens de poema para os passarinhos. E poderia haver vida sem citar alguma frase de "A Idade do Serrote"?
Havia a época do jogo de botão narrado à maneira do locutor poeta, aquele que tem nome de flor. Depois era o tempo de ficar ao seu ladinho ouvindo o oswaldiano Osmar Santos colado no radinho.
O país teve também o poetas locutores. Ary Barroso. E Antônio Maria. Hoje, o futebol poético está como ele. Cantando ninguém me ama, ninguém me quer.
Só a letra de "Manhã de Carnaval" já teria assegurado o lugar perpétuo no céu. Saber que há uma antologia de Antônio Maria nas livrarias desperta um sentimento incomum em mim: o menino antigo.
E, embora ninguém fale em público, por sentimento horroroso das culpadas vítimas da modernidade, aqui e ali você percebe a presença do botafoguense Vinícius, que fez da delicadeza um culto.
Uma época de pequenos (de Dungas e anões do Orçamento, e outros) como esta só pode se manifestar por superlativos. Megas, supers e etc. Cadê a imensa grandeza quente dos diminutivos?
"Minha seleçãozinha de ouro da Copa do Mundo de 1962 eu vos suplico que não jogueis mais futebol internacional que o meu pobre coração não aguenta tanto sofrimento...".
Alguém hoje escreveria assim, como Vinícius de Moraes?
Tomara que a volta do Murilo, do Vinícius, do Antônio profissão esperança possa convencer aquela menina que a vida é cheia de promessas maiores do que os dois cabeças de área.
E tomara que reste alguém, um alguenzinho, para chamar a bola de meu bem, meu benzinho... O consenso hoje está com os que têm uma visão pragmática e utilitária da pobrezinha da bola.
O defensor do futebol poético hoje é um homem solitário até no Brasil. "Um homem solitário, que sabe o que quer e não cede `isso' de sua magnífica solidão", como escreveu o Antonio Maria.
Para que este sentimento renasça é que se escreve aqui o soneto da delicadeza perdida no futebol brasileiro.
Eu poderia não ganhar a Copa com Edmundo, Bebeto, Romário, Edílson e Muller no ataque. Mas que eu golearia o Canadá, ah, eu golearia. Com doçurazinha!

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