São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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As metamorfoses de Fernando Henrique

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

"Adaptabilidade" é um termo técnico que, em biologia, tanto quanto em psicologia ou sociologia, se refere à capacidade de um organismo vivo, ou de um indivíduo ou grupo, se ajustar a mudanças do meio ambiente.
A natureza apresenta para o homem e para os demais seres vivos um dilema primordial. Mudanças ambientais exigem adaptações, variação. Enquanto isso, a luta pela sobrevivência exige eficiência, o que significa especialização.
Quanto mais especializada uma espécie, um indivíduo ou um grupo, menos adaptável será. E, para a sobrevivência, essas duas qualidades são necessárias, embora incompatíveis.
Talvez fosse por isso que Ovívio denominou "Metamorfoses" sua narrativa de feitos e vidas de semideuses e heróis e das mudanças porque passou a sociedade em sua sucessão de conflitos pela sobrevivência.
Desde muito cedo Fernando Henrique mostrou uma inacreditável adaptabilidade. Jovem acadêmico de sucesso, manipulava o Conselho Universitário da USP (Universidade de São Paulo) com a competência de um Disraeli.
Foi o principal artífice da derrota de Zeferino Vaz, fazendo eleger Gama e Silva reitor, que, como retribuição, mais tarde viria a cassar o próprio Fernando, dentre tantos outros acadêmicos "de esquerda". Mas, nem por isso. Fernando Henrique não tarda a dar a volta por cima.
São os mesmos interesses que promoveram a revolução de 64 que vêm, imediatamente após sua volta ao Brasil, dar suporte, político e financeiro, à sua ascenção. Esta é sua primeira transição, adaptação, digamos metamorfose.
A segunda seria mais radical. Historiadores e sociólogos atribuem a Maquiavel e sua época o advento da "modernidade" em contraste com o medievalismo. Este pensador teria admitido a legitimidade de uma esfera de atuação para a política apenas tangencial àquela da ética.
Mas seria o acadêmico capaz de transitar de seu mundo universitário, eminentemente ético e rigidamente ritualizado, para o âmbito do pragmatismo político, das concessões e dos ajustes casuísticos? Substituir a verdade pela astúcia, a razão pela retórica?
Fernando iniciou sua carreira política concorrendo para senador com o impecável Montoro, apoiado por Quércia. Logo depois, a terceira metamorfose. Montoro eleito governador, Fernando adere a ele e se opõe a Quércia.
É governo Sarney, e os "autênticos" fazem oposição a Sarney, inteiramente desprestigiado. Fernando, um pouco a contragosto, é verdade, é induzido pelos "autênticos" a declarar guerra a Sarney.
Passa para a oposição no momento errado. Que azar! Por que não seguiu seu instinto "pefelista" já dominante àquela época? Funaro lança o Plano Cruzado. Sarney é entronado pelo povo.
Apara o bigodaço e impõe seu jogo. Fernando fica em cócegas. Em Campinas, o cenário da conciliação é armado e os autênticos, aos borbotões, se jogam nos braços de Sarney. Que apoteose! Fernando chora lágrimas de arrependimento nos ombros do mesmo Sarney que havia vilipendiado duas semanas antes. Adaptabilidade, metamorfose número cinco.
Mas não demora muito o namoro e além do mais o sonhado Ministério do Exterior não lhe é oferecido. E o cruzado, afinal, não é de ferro. Sarney cai na desgraça novamente.
Os autênticos passam para a oposição. De autêntico sarneysista, Fernando passa para autêntico oposicionista. Não foi Goethe que disse que não tinha medo de mudar de idéia porque não tinha medo de pensar? Fernandão pensa um bocado.
E aí foi a vez de Collor, o hiperliberal. O PSDB em segundo turno apóia Lula. Fernandão nem tanto assim. Há, desde cedo, uma atração magnética entre o Fernando socialista-liberal e o Fernando liberal-socialista.
O PSDB prefere, não obstante, o seu espaço natural, o muro. Usa sua comissão de frente para coonestar o esquema Collor-PC Farias. São os periféricos Jaguaribe, Lafer e Goldemberg usados como pára-choque.
Fernandão se agarra a Fernandinho, mas não dá. O impedimento é inexorável. Fernandão chora. Não é dessa vez que vai ganhar o Itamaraty. E pior ainda, vai ter de sofrer uma nova metamorfose.
Subitamente, descobre que o outro Fernando é um corrupto. Mas puxa, que sorte! Seu amigo mineiro –como é mesmo o seu nome?– vai assumir a Presidência. Quem sabe, talvez tenha chegado a vez do PSDB? E do Fernandão, por que não? Mais uma adaptaçãozinha. Só isso. Treinou seu sotaque mineiro. Tomou posse e logo subiu de posto. E agora a maior oportunidade de sua vida, a Presidência da República.
"Esqueçam tudo que eu disse até hoje". Poucos são capazes de perceber o quanto significa para Fernando Henrique esta imensa renúncia. A vida de um acadêmico é o que ele desvenda, o que ele escreve, o que ele ensina. Seu caráter, sua própria identidade se confunde com o que diz.
Fernando Henrique abdica de seu passado, de sua identidade em benefício de seu país! Que magnífico exemplo de resignação. E, desde esse dia, aí vai ele procurando em todos os cantos uma personalidade adequada ao seu novo papel.
De Sílvio Santos tomou emprestado os 300 dentes. Assenhoreou-se da indignação inflamada de Brizola. Aderiu rápido ao Padim Ciço, antes que o Boris venha com uma das suas. Pediu a benção ao Senhor da Guerra, Roberto Marinho. Troca carícias até com o imperador da Bahia, ACM.
Como o ambicioso Fausto, vende a alma ao diabo. Coincidentemente, o acordo é feito com dois partidos dirigidos por banqueiros que, por natureza, gostam de inflação. Como é bom para o Brasil que haja tanto banqueiro patriótico!
Mas esta última metamorfose de Fernando Henrique não pode deixar de trazer reminiscências daquela incômoda metáfora de Kafka em que o narrador acorda em um pesadelo, metamorfoseado em enorme inseto.
Espanta-se com os ruídos que suas próprias patas fazem e não consegue abrir as portas desenhadas para serem operadas por mãos humanas. O infeliz morre sufocado por um exo-esqueleto ao qual não se adapta. Cuidado Fernandão, vais um dia acordar Fernandinho.

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