São Paulo, quinta-feira, 9 de junho de 1994
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Cosmo ameaçado

HÉLIO SCHWARTSMAN

O Brasil é um país estranho. Convive já há muito tempo com uma infinidade de problemas seriíssimos que demandam solução urgente. Dentro de quatro meses, ocorrerão as maiores eleições da história do país, nas quais a população escolherá seus dirigentes e legisladores, de deputados estaduais ao presidente da República. Fosse o Brasil um país sério, os candidatos estariam debatendo esses problemas e procurando tornar claras as suas propostas e as de seus partidos para tentar resolver tantas e tão espinhosas questões.
Mas não é o que ocorre. Um exemplo. O senador e candidato peessedebista à Presidência, Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de renome internacional, em vez de discutir formas de tentar diminuir a miséria –sem dúvida o mais grave problema da nação–, prefere tecer considerações acerca da influência dos preconceitos sulistas sobre a diferenciação taxionômica entre o Equus caballus e o Equus asinus, ou, mais popularmente, entre o cavalo e o famoso jegue.
Também o candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva e seu vice, o senador José Paulo Bisol (PSB), no lugar de dizer o que pretendem fazer para controlar a inflação –outro flagelo nacional–, preferem dedicar seu tempo e atenção à bizantina questão da diferença entre legalidade e legitimidade, sua interação e seus limites.
Não se trata de dizer que essas questões não tenham lá sua importância. Há até membros do gênero Equus que garantiram seu lugar na história universal, como Bucéfalo (o cavalo de Alexandre, o Magno), em cuja honra se fez erigir uma cidade, ou Incitatus (o cavalo de Calígula), que foi nomeado cônsul de Roma. Também a questão da diferença entre o legal e o justo ocupa lugar de destaque na filosofia do direito e sobre ela já se escreveram páginas e mais páginas ao longo dos séculos sem que se chegasse a qualquer esboço de conclusão definitiva aceita por todos.
Do mesmo vício padecem os demais candidatos ao posto máximo do país. Quércia dedicou algum tempo à transcendental questão de saber se Ciro Gomes usa ou não, na intimidade, um brinco. Mais teológico, Brizola coloca sua candidatura a serviço de Deus. O vestal Amin considerou o uso de um carro de som de sindicato por Lula um pecado capital e ameaçou processá-lo, vendo nessa atitude uma ameaça à ordem do cosmo. Poucas semanas depois, querendo ou não, acabou fazendo coisa análoga.
De fato, pelo menos no Brasil, o cosmo, entendido como ordem natural das coisas, está ameaçado. Tudo estaria muito bem se FHC disputasse uma cátedra em zoologia, Lula buscasse uma titulação no Largo de São Francisco, Quércia estivesse atrás de uma licença de detetive particular, Brizola quisesse ordenar-se bispo e Amin perseguisse o epíteto de Catão da República.
Ocorre, porém, que todos eles são candidatos à Presidência do Brasil, um país bastante concreto com problemas terrivelmente graves. Debatê-los franca e consistentemente é um pré-requisito para o país sair da crise. Criar fatos para a mídia faz parte de qualquer campanha eleitoral, mas há um limite. Zoologia, filosofia, teologia etc. podem até contribuir para que se encontrem as soluções pelas quais o Brasil anseia, entretanto, um passo bem mais simples e produtivo seria que os políticos começassem a discutir política.

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