São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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A fúria santa dos palcos

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A fúria santa dos palcos
‘‘Puxa, já faz iso tudo? Até o ator Walmor Chagas, viúvo de Cacilda becker, surpreedeu-se com a velocidade do tempo. Já faz, mesmo, 25 anos que ela morreu, de um aneurisma cerebral, após 39 dias de coma em São Paulo. Tinha 48 anos de idade e praticamente 30 de teatro.
O que na época se disse continua válido: com a morte de Cacilda, o teatro brasileiro perdeu sua maior diva. Ela foi a nossa Eleonora Duse, a nossa Sarah Bernhardt, a nossa Maria Callas.
Magra, miúda, meio desengonçada, deficiente na voz e na respiração - nada indicava que aquela garota, nascida no interior de São Paulo (Pirassununga), teria no palco um futuro tão fulgurante. O teatro entrou em sua vida como um substituto natural do balé, sua primeira veleidade artística - e nunca mais se separaram.
A despeito das tentações cinematográficas (fez dois filmes: ‘‘Luz de Meus Olhos’’, em 1947, e ‘‘ Floradas na Serra’’, em 1954), televisivas (estrelou folhetins na Record, na finada Tupie na Bandeirantes) e cívicas ( presidiu a Comissão Estradual de Teatro de São Paulo entre 1968 e 1969), manteve-se fiel à ribalta até o fim.
Fiel a ponto de quase morrer em cena aberta. Por questão de segundos seu aneurisma não estourou durante o segundo ato de ‘‘Esperando Godot’’, na tarde de 6 de maio de 1969. Mas ela ainda vestia os andrajos de Estragon, o insólito mendigo de Samule Beckett por ela transformado em uma figura chaplinesca, quando seu corpo entro na sala de cirurgia para uma inútil trepanação.
Sua agonia só terminaria no dia 4 de junho. O país, que ia mal, tão mal quanto o seu teatro, perseguido e censurado pelos militares ficou pior ainda sem a sua mais admirada atriz e o seu mais aguerrido anjo da gurada.
Foi, de fato, a nossa maior atriz? A mais intensa certamente foi - ao menos das quantas pude apreciar. A última vez que a vi em cena foi na temporada carioca de ‘‘Quem Tem Medo de Virginia Woolf?’’, no teatro da Maison de France. Sua Marta era o vulcão que o papel exigia. Cacilda não tinha só talento, energia e uma fúria santa, mas sobretudo aquilo de que são feitas todas as divas: magnetismo.
No fundo era isso que estava por trás daquele seu dom, tão bem descrito pelo crítico Yam Michalski, de dirigir-se individualmente a cada espectador na platéia, imiscuido-se em sua vida, impondo-lhe a verdade profunda de seus personagens e deixando-o marcado com o calor da sua presença, apenas com um leve sussurro ou uma maneira de respirar em silêncio.
Desabrochou no Rio, no amadorístico Teatro do Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno, e profissionalizou-se na trupe de Raul Roulien, parando dois anos (1942a 1944) para fazer companhia à mãe, em São Paulo, onde se empregou por uns tempos como caixa de um escritório de seguros. Aos 23 anos, voltou para o Rio, e desta vez quem lhe deu a mão foi Bibi Ferreira. Três anos depois, fazia seu primeiro filme e já tinha a crítica a seus pés.
Seu retorno definitivo a São Paulo se deu através da recém -fundada Escola de Arte Dramática, onde deu aulas sobre comédia por sugestão do crítico Décio de Almeida Prado. Após um período de experiência no teatro amador, ei-la sob as luzes do Teatro Brasileiro de Comédia, roubando a cena comandada por Ziembinski e Adolfo Celi. Cacilda lá ficou nove anos, encarnando uma desafiante variedades de papéis: de Antígona à Dama das Camélias, de Mary Stuart a Maggie, a gata emteto de zinco quente. Nenhum, dizem , tão marcante quanro o moleque de ‘‘Pega Fogo’’, de Jules Reanrd.
Anres que o TBC acabasse de vez, aderiu, no final dos anos 50, à voga da companhia independente . Nascia o Teatro Cacilda Becker, exibindo na marquise o marido (e mecenas) Walmor Chagas, a irmã Cleyde Yáconis, o irmão Fred Kleemann e o velho companheiro Ziembinski. ERa a porta que faltava apara a entrada no país dos autores teatrais mais importantes da época, entre os quais Ionesco, Duerrenmatt, Albee e Beckett.
Cacilda não foi apenas uma diva e uma atriz magnetizante. Há 25 anos, nós perdemos também uma empresária que sabia escolher com sensibilidade e audácia o repertório internacional e os autores nacionais que mais falta nos faziam.

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