São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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França e Alemanha fortalecem união

DO "LIBÉRATION" E DO "SUDDEUTSCHE ZEITUNG"

O presidente da França, François Mitterrand, e o chanceler da Alemanha, Helmut Kohl, se encontraram em Heidelberg (Alemanha) no último dia 8, na semana das comemorações dos 50 anos do dia D, às quais Kohl não compareceu.
Em 6 de junho de 1944, tropas aliadas desembarcaram nas praias da Normandia, iniciando a libertação da França do domínio da Alemanha nazista na Segunda Guerra.
Oito países, inclusive França e Alemanha, elegem hoje deputados para o Parlamento Europeu.
A entrevista a seguir foi realizada antes do encontro.

Pergunta - O mundo comemora o aniversário de um dos mais importantes acontecimentos militares do século, que ocorreu um ano antes da queda do nazismo. Quais os seus sentimentos em relação às cerimônias de hoje nas praias da Normandia?
François Mitterrand - As cerimônias que celebram o desembarque na Normandia são especialmente solenes, pois estamos comemorando seu 50º aniversário.
Exatamente meio século atrás, uma imensa armada portando as cores da liberdade e da democracia devolveu a esperança e a dignidade ao povo da França.
Os sentimentos em tal data só podem ser de gratidão em relação às nações que participaram dessa tremenda reação contra o nazismo, de admiração em relação àqueles que organizaram e realizaram operações de tal magnitude, e de gratidão em relação aos homens corajosos que, sacrificando as próprias vidas, pisaram no solo da Normandia naquele dia.
É natural que os atores ou as testemunhas desses acontecimentos, os que ainda vivem 50 anos depois, desejem reunir-se e comungar no local onde aconteceu este episódio de suas vidas.
São sentimentos que todos podem compreender. As cerimônias de 6 de junho não têm outro objetivo, senão satisfazer esse desejo.
Helmut Kohl - Não respondeu à pergunta.
Pergunta (dirigida a Helmut Kohl) - O sr. lamenta não estar presente?
Kohl - De forma alguma. Apesar de constantes afirmações feitas em contrário, eu nunca procurei obter um convite, pois acredito que a participação alemã nesse evento não seria apropriada.
Ademais, com relação a esta pergunta não há qualquer divergência de opinião entre mim e o presidente Mitterrand.
Pergunta (dirigida a François Mitterrand) - O sr. lamenta a ausência do chanceler Kohl?
Mitterrand - Nunca houve qualquer problema ou mal-entendido entre mim e o chanceler Kohl em relação a este assunto. O dia 6 de junho é uma comemoração; a história não pode ser reescrita.
O chanceler Kohl e eu não pensamos que o aniversário do desembarque aliado seja a ocasião mais apropriada para homenagear e consolidar a amizade franco-alemã.
Mas nós, na França, temos plena consciência de que a derrota do nazismo possibilitou a ascensão de uma Alemanha democrática, com a qual construímos um relacionamento mais próximo do que com qualquer outra nação.
É nesse espírito que a Alemanha Federal será associada às cerimônias de 8 de maio de 1995 (cinquentenário da rendição alemã na Segunda Guerra).
Antes desse evento teremos, no futuro próximo, a oportunidade de expressar o relacionamento privilegiado que existe entre nossos dois países, em Heidelberg, no dia 8 de junho, quando estarei presente, a convite do chanceler Kohl, numa grande celebração franco-alemã da juventude.
E no dia 14 de julho, conforme solicitei, a Tropa Conjunta Européia vai marchar pelos Champs Elysées, em Paris.
Pergunta - Desde o final do século 19, três guerras marcaram as relações franco-alemãs. Estas tragédias pertencem ao passado. Que garantias os senhores podem oferecer a suas duas nações que impeçam tais tragédias de acontecer novamente?
Kohl - Para a Alemanha, na condição de país europeu que possui o maior número de vizinhos e fronteiras, a continuação lógica da unificação européia é uma questão crucial. Na verdade, é provavelmente a mais crucial.
Não se pode dar como certas e garantidas a paz e a liberdade; elas precisam ser protegidas todo dia.
A unificação européia constitui inquestionavelmente uma garantia contra a volta e o fortalecimento do nacionalismo, do chauvinismo e das rivalidades políticas na metade ocidental do continente.
Na análise final, a unificação européia bem-sucedida é questão de guerra e paz no século 21.
Mitterrand - Não existe um }seguro contra todos os riscos no que diz respeito à política. É uma questão, em primeiríssimo lugar, de determinação, tanto dos líderes quanto do povo.
Mas está claro, hoje mais ainda, que a edificação da Europa constitui a melhor garantia possível contra o retorno de tais confrontos.
É por isso que aqueles que, por nacionalismo, cautela ou egoísmo, pregam o retraimento isolacionista parecem ser bastante míopes e extremamente imprudentes. A falta de união nunca foi expressão de força nem base para a paz.
Pergunta - Os desembarques na Normandia ocorreram 50 anos atrás. Por quanto tempo ainda será apropriado comemorar as disputas em nossa história comum? Pode tal comemoração do passado realmente garantir nosso relacionamento?
Kohl - Posso compreender por que os aliados desejam comemorar esses acontecimentos, que foram de grande importância para a Europa, além de seu custo humano.
Nós alemães também devemos recordar esse período da história, para dele tirarmos as lições corretas para o futuro.
Em 8 de junho de 1994, o presidente Mitterrand e eu vamos nos reunir com jovens da França e da Alemanha em Heidelberg, enfatizando o compromisso de nossas duas nações com o ideal europeu.
Atendendo à sugestão do professor Joseph Rovan, queremos convidar jovens de ambos os países a compartilharem suas idéias sobre a Europa no século 21.
É é importante que suas idéias e sugestões sejam incluídas em nossos esforços para ampliar a unificação européia, especialmente durante as próximas presidências alemã e francesa da União Européia.
Precisamos conseguir envolver os jovens ativamente em nossas deliberações, pois a paz e a liberdade futuras deles dependem da construção da Europa.
Mitterrand - A história de duas grandes nações, especialmente vizinhas, raramente é uma sucessão de casos de amor. Existem memórias boas e ruins, e seria simplista nos lembrarmos de algumas delas, e não de outras.
As cicatrizes encobertas da história são persistentes. A amnésia voluntária nunca foi uma solução.
Pelo contrário: só um acordo com o passado pode fornecer a determinação política duradoura da qual acabo de falar.
E constitui um paradoxo apenas aparente o fato de que a reconciliação mais surpreendente, que forma o cerne da Europa, tenha sido efetuada entre França e Alemanha, os dois países que mais se combateram nos últimos cem anos.
Em relação a este ponto e a outros, com o passar do tempo, chegará o dia em que não mais será sentida a necessidade de comemorar tais acontecimentos, por memoráveis que tenham sido.
Pergunta - O dia 6 de junho realça o engajamento dos EUA na guerra contra o nazismo, e marca o início de uma presença militar na Europa (especialmente na Alemanha), que ainda não chegou ao fim. Qual deveria ser o papel militar dos EUA na Europa, de agora em diante?
Kohl - Para os europeus, a aliança com as democracias norte-americanas e a presença americana na Europa são, e continuarão sendo, expressões visíveis de valores compartilhados de ambos os lados do Atlântico, constituindo uma base essencial para a proteção da paz e da segurança na Europa.
Estou muito satisfeito porque o presidente Clinton, na última cúpula da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental) em Bruxelas, em janeiro de 1994, renovou seu compromisso de manter 100 mil soldados norte-americanos na Europa.
Ademais, uma aliança efetiva constitui, ao lado da União Européia, condição essencial para integrar as novas democracias da Europa do leste, central e do sudeste nas comunidades ocidentais existentes, e para assegurar uma paz duradoura para a Europa inteira.
Mitterrand - A vitalidade da aliança entre os EUA e seus parceiros europeus constitui um elemento essencial de nossa segurança, e o envolvimento militar dos EUA na Europa é a própria ilustração da aliança transatlântica.
É por isso que, durante as discussões realizadas nestes últimos anos sobre a evolução da Otan, a posição que sempre defendi é que nada deve ser feito para desviar a aliança atlântica de sua missão fundamental de fiadora da segurança de seus membros.
Naturalmente, isso não deve desencorajar os europeus de estabelecerem em conjunto uma defesa européia comum.
Acredito que fizemos progressos neste ponto. A criação da Tropa Européia Conjunta é um passo significativo nessa direção.
Durante a recente cúpula da aliança atlântica, em janeiro passado, senti que nossos amigos americanos e canadenses compreenderam que, longe de enfraquecer a aliança, o desejo dos europeus de assumir suas responsabilidades relativas à segurança e à defesa era sua melhor garantia de apoio a longo prazo a aliados realmente determinados, como enunciado no preâmbulo do Tratado do Atlântico Norte, para salvaguardar a liberdade de suas nações, sua herança comum e suas civilizações.
Pergunta - A França e a Alemanha decidiram, em comum acordo, formar uma Tropa Conjunta Européia. Em sua opinião, essa tropa é o embrião de um Exército Europeu?
Kohl - Ao estabelecermos a Tropa Conjunta Européia, o presidente Mitterrand e eu pretendemos desde o início atribuir à íntima cooperação franco-alemã um aspecto europeu.
A Bélgica já aceitou o convite que fizemos aos Estados-membros da UEO (União da Europa Ocidental) para participarem da Tropa Européia Conjunta.
A participação da Espanha está em fase de negociação. A Tropa Européia Conjunta estará completamente estabelecida em 1995 e já constitui um exemplo bem-sucedido para estruturas militares européias, que fortalece a contribuição européia e da UEO à Otan.
Ela poderia também funcionar como modelo para outras unidades militares européias numa União Européia cada vez mais vinculada.
Estou especialmente satisfeito porque o presidente Mitterrand convidou os soldados alemães, franceses e belgas da Tropa Conjunta Européia a participarem no desfile de 14 de julho em Paris (comemoração da queda da Bastilha, que deu início à Revolução Francesa em 1789).
Mitterrand - Evidentemente, minha resposta é sim. O embrião irá crescer para dar lugar a um Exército europeu? O tempo dirá.
Mas acredito que o progressivo surgimento de uma entidade de defesa européia, equipada com os meios necessários e servindo a uma política comum, virá com o tempo a constituir a pedra de toque do êxito da União Européia.
Pergunta - O presidente Mitterrand acaba de sugerir que }o porta-aviões Charles de Gaulle vai assegurar o lugar da França numa futura marinha européia. Deveria esse navio tornar-se parte de uma frota européia integrada, seguindo o modelo da Tropa Européia Conjunta?
Kohl - No caso dos navios, as operações multinacionais num contexto internacional já têm uma história longa e comprovada.
Há muitos anos vimos promovendo uma cooperação muito íntima neste campo com a França e nossos outros aliados.
Eu apontaria para as unidades operacionais navais permanentes da Otan e a frota da UEO, que contribuíram para controlar crises, especialmente nos últimos anos.
Por isso concordamos em desenvolver procedimentos que nos capacitem a preparar uma frota conjunta franco-alemã a qualquer momento.
Além do contexto bilateral, essa frota temporária também poderia ser colocada à disposição da Otan ou da UEO.
Essa dupla disponibilidade corresponde ao modelo da Tropa Européia Conjunta, e contribuiria também para reforçar as capacidades operacionais da UEO, além do compromisso europeu com a Otan.
Sob esta ótica, interpreto as afirmações do presidente Mitterrand como sinal para reforçar a cooperação naval européia.
Pergunta (ao presidente Mitterrand) - No último dia 7 de maio, o senhor propôs que o porta-aviões Charles de Gaulle devesse }assegurar a posição da França na futura marinha européia. O senhor sugere a criação de um esquadrão conjunto europeu, seguindo o modelo da Tropa Conjunta Européia?
Mitterrand - Acredito que essa questão irá se colocar. Na verdade, já se colocou com o conflito na ex-Iugoslávia.
Na ocasião, pareceu mais simples e efetivo coordenar na UEO a participação nas operações navais que controlam o embargo.
É um primeiro passo. Outros virão, e sou favorável a eles. A posição que expressei antes com respeito à entidade de defesa européia também é válida para a Marinha.
Pergunta - As cerimônias de hoje nos fazem lembrar que os EUA desempenham um papel considerável na política, cultura e sociedade da Europa. À luz dessas comemorações, como os senhores vêem esse papel? Ele simboliza as relações atuais entre os EUA e a Europa?
Kohl - A ponte transatlântica que nos une aos EUA e ao Canadá visava prioritariamente as questões de segurança, na Guerra Fria.
Hoje precisamos ampliar as pistas desta ponte, e intensificar a cooperação em campos como a economia, a cultura e a ciência.
É especialmente importante que sejam intensificados os intercâmbios entre jovens.
Mitterrand - Os EUA ocupam uma posição importantíssima na Europa. Isso se deve a suas qualidades, dinamismo, criatividade. Também se deve a seu poderio econômico e financeiro, ao tamanho de seu mercado doméstico e de seus interesses.
Esse domínio é onde sofremos a mais dura competição, que nossas divisões apenas acentuam. Isso apesar de nós, na Europa, dispormos de considerável potencial criativo.
No que me diz respeito, vejo isto como mais uma razão para fortalecer a União Européia.

Tradução de Clara Allain

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