São Paulo, segunda-feira, 13 de junho de 1994
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O Estado e o ensino "gratuito" particular

ANTONIO CARLOS CARUSO RONCA

O caráter dramático da situação da educação no Brasil coloca-se de novo em evidência, com a edição da medida provisória 524, que determina novas regras para a conversão das mensalidades escolares.
No momento em que se discute a legitimidade das leis que orientam a reorganização da própria vida do país, temos a oportunidade de entrar, mais uma vez, nessa discussão, em virtude dessa decisão governamental.
Equivocada e ameaçando inviabilizar o trabalho de instituições do interior das quais se procura exatamente estimular a participação na sociedade, trabalhando para a formação de cidadãos críticos, a medida provisória 524 cria graves problemas para os que lutam pela melhoria da educação no país.
Cabe reafirmar nossa crença no papel regulamentador que o Estado deve assumir, frente às diversas instâncias da sociedade, entre elas a economia. É importante, porém, não esquecer a finalidade dessa regulamentação e suas consequências.
Como a educação é uma questão pública, com certeza cabe ao Estado definir políticas, indicando linhas de ação aos diversos órgãos, inclusive coibindo abusos e submetendo as instituições universitárias tanto estatais quanto particulares a um processo contínuo de avaliação.
Por meio de avaliações contínuas, o governo teria mecanismos para punir os abusos –existentes, sem dúvida, em alguns casos– mas também para verificar o trabalho sério desenvolvido por muitas instituições de ensino.
O Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras já fez chegar ao sr. presidente da República documento em que expressa o desapontamento com a medida provisória, uma vez que na etapa preliminar de discussão da matéria, o governo havia demonstrado receptividade às ponderações e sugestões apresentadas pelos interlocutores envolvidos com o tema. No momento da sua regulamentação, apenas uma parte desses interlocutores foi ouvida.
Além do mais, é extremamente grave o fato de que a edição da MP em junho encontrou situações já consolidadas por acordos entre as partes.
Enquanto reitor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), sentimo-nos em situação confortável ao discutir esta questão, uma vez que em nossa universidade pudemos estabelecer negociações de qualidade com os representantes das entidades estudantis e chegar a um acordo sobre o valor a ser cobrado nas mensalidades.
Apesar de não ter sido um processo fácil, o resultado a que se chegou na PUC-SP foi extremamente positivo. Contamos com a seriedade dos alunos para avaliar com a reitoria os dados econômico-financeiros da universidade.
Isso demonstra que, se houver clareza e transparência na apresentação da situação financeira da instituição e sensibilidade nas propostas apresentadas, teremos oportunidade de exercitar a democracia e a autonomia desejáveis.
Ao desconsiderar a desigualdade de situação das escolas, o governo corre o risco de ser arbitrário, não distinguindo o trabalho de qualidade que se desenvolve em instituições privadas de nítido caráter público e aquele realizado por algumas escolas cujo objetivo é simplesmente obter lucro.
Por outro lado, verifica-se que o único setor da economia atingido por medidas de contenção foi a educação, que assim se vê uma vez mais "privilegiada". Constate-se que nenhum oligopólio ou outro setor da economia sofreu restrições. Acentue-se finalmente: qual outro setor fez acordo com os consumidores para reajustar seus preços?
Pode-se ainda indagar em que medida o próprio Estado esforça-se para conter suas próprias tarifas –observem-se os aumentos quase diários verificados nos preços dos combustíveis, por exemplo. Vê-se, assim, a grande injustiça praticada com essa medida contra a instituição escolar.
O direito de todos à educação, à luta por um ensino público e gratuito, pela possibilidade do acesso e permanência nas escolas, devem, sem dúvida, estar presentes no horizonte daqueles que desejam uma sociedade justa, no limiar do terceiro milênio.
Esta medida provisória apresenta-se como um gesto extremamente demagógico. Como se, num passe de mágica, ao diminuir as mensalidades das escolas privadas, o governo pudesse estar contribuindo para a "publicização" do ensino, permitindo o ingresso de maior número de alunos que, supostamente, teria condições de pagar a escola, reduzidas as mensalidades à metade.
O erro do governo se configura em dupla dimensão. É um erro técnico, uma vez que utiliza para cálculo da média valores em cruzeiros reais, quando deveria calculá-la em URVs e estabelece critérios diferentes para os reajustes de salários de professores e mensalidades de alunos.
É também um erro político, pois desconsidera a situação concreta das escolas neste momento do país. As greves das universidades federais e estaduais e os acordos já realizados por parte das escolas com pais e estudantes ilustram essa afirmação.
A manutenção dessa decisão levará à inviabilização das boas escolas particulares do país e dará a ilusão de que se ampliou a escola pública quando o que se revela é o descompromisso com uma educação de qualidade.

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