São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
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Criatividade faz do Brasil a vanguarda do futebol

RUY OHTAKE

Outro dia, almoçando com Adhemar Ferreira da Silva, ele dizia da sua preparação aos grandes títulos que conquistou. Que frequentemente, seu técnico de então, o abnegado Dietrich Gerner, pagava-lhe a condução -o bonde para a pista do Canindé- além do lanche reforçado, sempre com a paternal recomendação para se alimentar bem. Por isso, acho que constituímos um país singular: tantos desajustes sociais e desacertos econômicos não poderiam produzir esportistas campeões, sobrepujando os superpreparados atletas do primeiro mundo.
Foi emocionante ver Alessandra, Leila e Ruth ao lado de Paula, Hortência e Janete conquistarem o Campeonato Mundial de Basquete Feminino. Com toda certeza aquelas três meninas conseguiram superar a infância e a adolescência difíceis. Quase inacreditáveis. E ganharam garbosamente suas medalhas de ouro. Sem falar nas recentes conquistas do voleibol masculino.
Esse é o potencial do nosso país, que certamente se concretizará quando for possível incorporar todos os jovens numa educação digna. Porque talento e criatividade não nos faltam. Principalmente no futebol.
Gosto de assistir o futebol. Frequentemente vejo pela televisão jogos do campeonato europeu, que Silvio Lancellotti, uma verdadeira enciclopédia, comenta de uma forma muito interessante. Inteligente. E assisto vários jogadores considerados estrelas européias. O Roberto Baggio, artilheiro italiano. O Borelin, atacante sueco, jogando no Parma. O Lothar Matthaus, festejado armador alemão. Ótimos jogadores, necessariamente oportunistas.
Mas, acho que o craque é Romário.
Tem lampejo de gênio que faz o gol, que decide a partida. Por exemplo: aquele gol contra o Canadá quando enganou cinco defensores, com cinco dribles diferentes em cinco segundos, para fazer um gol tranquilamente; e outros como aquele em que dá um toque de bola pelo lado esquerdo do goleiro para avançar pelo lado direito e ao perceber que o mesmo vai alcançá-lo, para cometer o pênalti, subitamente volta pelo mesmo lado da bola, ficando fora de alcance, fazendo mais um gol. O desvio dessa sua corrida também é coisa de craque. Não há tempo para raciocínio. Só o lampejo do gênio. Seu olhar que a televisão mostrou em close é o olhar que me lembra o de Pelé: a dominar o destino da bola.
Penso que arte e esporte têm muita coisa em comum. A nossa música popular, reconhecida internacionalmente como uma das manifestações independentes mais significativas do mundo. Pela alta qualidade criativa, que até dispensa as gigantescas produções inerentes aos shows de Madonna ou de Michael Jackson. Um simples violão é suficiente para acompanhar toda exuberante musicalidade de um Chico Buarque de Hollanda, de um Caetano Veloso e de tantos outros. Porque toda ênfase está na criatividade.
Torço para que a criatividade dos nossos jogadores seja muito mais ousada que qualquer esquema tático a ser adotado pela seleção.
Para cada inovação surge uma estratégia que tenta anular a criação. Mas a criatividade está sempre à frente, na vanguarda, por isso é inovadora e, as táticas são esboçadas, para que os médios e os medíocres possam bloquear os criadores.
Quando o Brasil foi campeão em 58, o time era escalado com o goleiro, dois zagueiros, três médios e cinco atacantes. Veja só, cinco atacantes. Aí os europeus começaram a inventar os esquemas defensivos para anular a criatividade brasileira e sul-americana. Eu me lembro que surgiram, desde um tal de MW, até um ridículo 4-5-1. Sem falar no "todo mundo ataca e todo mundo defende", é o "futebol moderno". Ninguém me tira da cabeça que são todos, todos esquemas adequados aos europeus: sem muita criatividade, compensada por ampla preparação atlética, desde a infância, originando o chamado futebol força.
O Brasil, além de tricampeão, foi em duas outras Copas a melhor seleção: em 1950, na inauguração do Maracanã, e em 1982, na ainda recente campanha na Espanha. Portanto, das onze Copas realizadas após a guerra, fomos os melhores em cinco delas: levamos três. Com futebol maravilhoso, que a todos deslumbrou. E não imitadores, e muito menos defensivos. Esse fortíssimo retrospecto nos coloca na posição de autêntica vanguarda do futebol. Que deve ser conduzida com a ousadia de quem acredita. De quem tem craques.

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