São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
Próximo Texto | Índice

Médico diz que Unicamp faz aborto

LUCIANA CAMARGO
DA FOLHA SUDESTE

O médico Aníbal Faundes, diretor do Caism (Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher), da Universidade Estadual de Campinas, afirma que a instituição realiza abortos para casos de malformação de fetos que não tenham condições de sobrevivência.
Segundo a lei brasileira, esse tipo de aborto é ilegal. O Código Penal prevê pena de um a quatro anos de prisão para pessoas que provocam aborto, mesmo com o consentimento da gestante. O médico pode ter o diploma cassado.
Segundo Faundes, a instituição, um dos mais importantes centros de atendimento à mulher do Estado, vem praticando este tipo de aborto "há alguns anos".
Faundes afirma saber que este tipo de aborto não é legal, mas que mesmo assim apóia sua prática.
Ele disse que é contra o aborto. "Acho que não existe nenhum ser humano favorável ao aborto. Eu sou a favor do direito da mulher de escolher se quer ou não interromper a gravidez."
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Faundes em sua casa, em Campinas, na noite de terça-feira.

Folha - Quando o senhor começou a trabalhar com mulheres e com aborto?
Anibal Faundes - Minha história com abortos começou em 1953, no Chile. Eu era interno do PS e fazia um plantão das 6h30 às 9h da noite. Geralmente ficava curetando abortos por duas horas e meia. Naquela época, a mulher que abortava era considerada criminosa. Eu me deixei levar pelo ambiente. A atendente de enfermagem tratava mal a mulher porque a mulher era uma criminosa, tinha matado um filho. Eu entrava nessa também. E, claro, a curetagem era feita sem anestesia, para que doesse. Até que eu comecei a escutar as mulheres. Comecei a escutar a história delas. E as histórias eram sempre trágicas. Foi aí que eu cheguei à conclusão de que nenhuma mulher gosta de fazer aborto.
Folha – O sr. tem idéia do número de mulheres que fazem aborto em Campinas por ano?
Faundes - Não existe estatística para Campinas.
Folha – É possível dizer que o aborto acontece em maior número em uma determinada faixa social?
Faundes – O aborto é praticado em todas as faixas sociais. A forma de aborto é que varia.
Folha – Quantas mulheres morrem em função de abortos?
Faundes – A estimativa é de que 10% a 12% das mortes maternas (aquelas que acontecem durante a gravidez ou logo depois do parto) estejam ligadas ao aborto.
Folha – O sr. é favorável ao aborto?
Faundes - Eu sou contra. Aliás, não acredito que haja alguém a favor do aborto. Eu sou a favor do direito da mulher de escolher se quer ou não interromper a gravidez. Hoje a legislação permite o aborto em duas situações. A primeira é se a gravidez coloca a vida da mulher em risco e a segunda é em caso de estupro.
Folha – O sr. sabe se as mulheres de Campinas usam métodos anticoncepcionais?
Faundes – Mais de 70% das mulheres de Campinas que vivem em regime de união usam algum tipo de anticoncepcional.
Folha – A Unicamp doa métodos a mulheres interessadas?
Faundes – O Caism fornece todos os métodos gratuitamente.
Folha – Qual o tipo de método que o sr. acha mais eficiente?
Faundes – Não existe método ideal. Existe o serviço melhor que oferece opções às mulheres. A mulher tem direito de decidir o que quer.
Folha – Que tipos de aborto caseiro chegam a Unicamp para se fazer a curetagem?
Faundes - Ainda há uma porcentagem alta de mulheres que usam Cytotec, pelo menos a metade das mulheres.
Folha – Como ele age em grávidas?
Faundes – Por via oral ele não é muito eficiente, mas quando colocado na vagina, ele dilata o colo, provoca contração e elimina o feto.
Folha – Coloca dentro da vagina, como absorvente interno?
Faundes – Dentro da vagina junto ao colo do útero. Aproveitamos para ensinar as mulheres como usar. É muito melhor que saibam fazer bem um aborto com Cytotec do que procurem uma aborteira que perfura o útero.
Folha – Qual é o risco que a mulher corre usando Cytotec?
Faundes –O principal problema é que ela tenha uma hemorragia, mas é raro.
Folha – Existem muitas clínicas em Campinas que fazem aborto?
Faundes – Existem clínicas, mas não sei se são muitas.
Folha – No caso do Caism, as mulheres quando chegam já estão com o aborto em andamento?
Faundes – Isso mesmo. Nós temos feito abortos legais. Mas todo aquele que chega solicitando, a gente faz. Não se coloca obstáculo à legalidade do aborto.
Folha - O Caism faz aborto?
Faundes – Aborto legal. A mulher que foi estuprada, que deu parte na polícia. Não é preciso mandado do juiz. Isso não está na lei. O que a gente geralmente faz é pedir o parecer da Medicina Legal da Unicamp. Isso é suficiente. Não precisamos ordem do juiz. A lei prevê o aborto nos casos de estupro e nos casos em que a mulher corre risco de vida.
Folha – O senhor não sabe quantos foram feitos na Unicamp este ano?
Faundes – Muito pouco, porque é difícil a mulher conseguir vencer todo o processo. Primeiro, porque a mulher estuprada não denuncia o estupro. Quando descobre que está grávida, o estupro já aconteceu há bastante tempo.
Folha - A Unicamp faz abortos?
Faundes – Nós fazemos um tipo de aborto que não é tipicamente legal, que é o aborto do feto malformado, que não tem condições de vida. Nós fazemos a interrupção da gravidez, apesar de não ser legal. Eu pessoalmente assumo isso.
Folha – Isso pode trazer algum problema?
Faundes – Alguém poderia me condenar porque estou dizendo isso. O Conselho Regional de Medicina não reconhece isso como legal. A lei não reconhece como legal.
Folha – Posso publicar isso?
Faundes – Publica. Eu quero que publique. Porque eu considero muito mais antiético manter uma mulher durante oito meses, sete meses com um feto na barriga que ela sabe que não vai viver, do que interromper a gravidez. O que é antiético é condenar a mulher a isso.
Folha - Quantos já foram feitos?
Faundes -Isso nós fazemos todos os anos. Não sei, não me pergunte números.

Próximo Texto: QUANDO O ABORTO É PERMITIDO EM ALGUNS PAÍSES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.