São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
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Ricos e pobres empatam na geopolítica da bola

HUMBERTO SACCOMANDI
DA REPORTAGEM LOCAL

A Copa dos EUA vai abalar novamente o equilíbrio geopolítico do futebol no mundo. Na disputa pela hegemonia na bola, países ricos e pobres se equivalem. Cada um desses grupos ganhou sete títulos até hoje. Isso muda este ano.
Pelos países pobres já foram campeões o Brasil (três vezes), a Argentina e o Uruguai (duas vezes cada). Os países ricos têm dois tricampeões, Alemanha e Itália. A Inglaterra venceu apenas uma Copa.
O futebol não reflete a distribuição do poder econômico e político no mundo. EUA e Japão, as duas superpotências econômicas da atualidade, são futebolisticamente insignificantes. Os dois principais centros de poder nesse esporte são Europa e América do Sul.
O futebol, porém, é o esporte mais popular do mundo. Dá prestígio e dinheiro. Tanto que o Japão acabou de inaugurar a sua liga profissional. Os norte-americanos, por sua vez, estão fazendo um grande esforço para popularizar o futebol no país. Devem ter seu campeonato a partir de 1995.
A geopolítica tradicional considera os países como organismos viventes no espaço. Eles se relacionam entre si e disputam poder na arena mundial. As armas convencionais são a potência econômica e o poderio militar.
O esporte, no entanto, sempre fez parte dessa disputa. Desde os jogos olímpicos disputados na antiga Grécia, os povos procuram afirmar sua influência e prestígio nos campos, pistas e estádios.
Os exemplos mais recentes do uso explícito do esporte pelo Estado ocorreram com os países do extinto bloco soviético. Em plena Guerra Fria, uma conquista esportiva contra o "imperialismo capitalista" tinha o sabor de uma vitória militar.
O futebol não é exceção nessa disputa geopolítica. O dramaturgo Nelson Rodrigues sabia disso quando afirmou que o "futebol é a pátria de chuteiras". Em nenhum outro esporte há uma identificação tão grande entre uma equipe e a identidade do país. Em campo está o Brasil, não somente a seleção.
Como o maior evento esportivo do planeta, ao lado das Olimpíadas, a Copa é um palco privilegiado para a principal disputa geopolítica da atualidade: o embate Norte-Sul.
É uma oportunidade única para a legião de países pobres do chamado Terceiro Mundo enfrentar em pé de igualdade o exclusivo e fechado clube dos países ricos do Primeiro Mundo.
As esperanças terceiro-mundistas estão depositadas em dois favoritos, Brasil e Argentina, e um azarão, a Colômbia. Muitos acreditam, porém, que a Nigéria, campeã africana e país mais pobre do torneio, pode surpreender.
Os países ricos são maioria na Copa (11 contra 8), apesar de serem minoria no planeta. Seus principais representantes são Alemanha e Itália, seguidas pela Holanda –duas vezes vice-canpeã, em 74 e 78.
Três grupos tangenciam essa disputa: os países europeus ex-comunistas (Rússia, Bulgária e Romênia), a Coréia do Sul ("tigre asiático", com economia em rápida expansão), e a Arábia Saudita (o maior produtor de petróleo do mundo). Esses países estão entre os ricos e os pobres.
A Suíça ajuda a ilustrar como o poder econômico não se traduz em domínio no futebol. A renda per capita somada dos cinco representantes latino-americanos não chega a metade da renda suíça. No entanto, Brasil, Argentina, Colômbia e México são mais cotados para levar a Copa do que os helvéticos.
Além de quebrar o equilíbrio de vitórias entre os blocos do Primeiro e Terceiro Mundo, a Copa dos EUA pode criar um país hegemônico. Caso vença Brasil, Alemanha ou Itália, o planeta terá o seu primeiro tetracampeão de futebol.
O retrospecto sugere que os sul-americanos levam vantagem este ano. Nunca um país europeu conseguiu ganhar uma Copa no continente americano. Isso não pode ser explicado apenas pelas condições climáticas, que favoreceriam as equipes locais. As Copas na América do Sul sempre são disputadas no inverno.
Essa maldição do Novo Mundo se deve mais à proximidade física dos países, ao fato de os torneios serem disputadas nas áreas de influência das equipes campeãs. Só o Brasil conseguiu vencer no continente "inimigo", em 1958, na Suécia.
A disputa pelo poder no futebol não se resume às quatro linhas do gramado. Inglaterra e Argentina, adversários na geopolítica mundial, têm em comum o fato de terem ganhado sob suspeita as Copas que realizaram.
Esses dois países exerceram forte pressão política para vencerem as Copas de 1966 e 1978, respectivamente. Tanto ingleses como argentinos foram beneficiados pela arbitragem e por situações extracampo.
Além das Copas, os países disputam também o controle da organização do futebol mundial. O brasileiro João Havelange se mantém há mais de 20 anos na direção da Fifa graças a uma política terceiro-mundista. Ele troca apoio por vagas na Copa aos países pobres da América Latina, Ásia e África.
Por trás do aparente clima de confraternização, a Copa dos EUA esconde assim mais um "round" no confronto geopolítico do futebol mundial, onde a Bolívia tem amanhã uma oportunidade única de fazer frente à poderosa Alemanha.

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