São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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A vida imaginária da judia Rahel

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O nome de Rahel Varnhagen é mencionado na história intelectual alemã graças ao salão que manteve em Berlim por volta de 1790- 1806, frequentado, entre outros, por Friedrich Schlegel, Scheleiermacher, Humboldt, Tieck, Jean Paul, Brentano e Chamisso. E também pela criação do culto à figura de Goethe que concebia –por meio de uma leitura particular de "Wilhelm Meister"– a "formação da personalidade" como uma assimilação do elemento burguês ao aristocrático.
Hannah Arendt (1906-1975), porém, não tomou a vida de Rahel como uma mero subterfúgio para uma apresentação da vida literária e das idéias da primeira geração romântica ou para uma exposição da história da interiorização do espírito goethiano. Pelo contrário, fez da vida, dos amores, do desnorteamento, da correspondência, dos fracassos, da assimilação desta judia alemã o centro e o eixo de seu livro.
Trata-se de uma biografia, em vários sentidos, incomum. Primeiro, a intenção de "narrar a história da vida de Rahel como ela própria poderia ter feito" –acompanhando de perto as palavras de suas cartas e diários– molda um narrador que não apenas segue o mais perto possível o curso das reflexões de Rahel sobre si mesma, mas que também, à maneira de um romance moderno, impõe como regra básica, "não querer saber mais que o próprio personagem sabia". Mas, uma vez sucedido ou delineado o desfecho de uma situação, não se exime de refletir sobre ela, procurando esgotar o seu significado filosófico e histórico, à maneira de um narrador romântico. Segundo, trata-se de um gênero híbrido –ao mesmo tempo literário e filosófico–, no qual a narração de sentimentos, de impressões, de eventos, da história é quase sempre seguida pela elucidação e avaliação dos conceitos que estão em jogo.
Essas oscilações não configuram um defeito, mas antes parecem decorrer de uma escolha consciente, pois permitem a Arendt manter o tom de uma reconstituição de época, que toda biografia deve ter, e, ao mesmo tempo, extrair dela ligações para o presente.
A estragégia inicial de Rahel para escapar de sua condição de judia, de seu "nascimento infame" passa pela negação do mundo, pela adesão a uma vida imaginária, ou seja, a um tipo esclarecido de "magia" que pretende substituir, evocar e predizer a experiência, o mundo, as pessoas, a sociedade. Tal opção assenta-se de tal forma nas técnicas e princípios do Romantismo, que a atenção e o exame que Arendt lhes concede configurem –num modelo individual, numa vida exemplar– as contradições e os impasses do ideal romântico, tomado como figura do espírito.
A reflexão, modalidade romântica do pensar por si próprio iluminista, nos libera dos objetos e de sua realidade (exatamente como o amor romântico liberta o amante da realidade de sua amada). Mais ainda, torna o presente inefetivo, concede-nos um poder ilimitado, na medida em que renunciamos ao mundo e elegemos a alma, o interior, como o único objeto digno de interesse. A introspecção, porém, na análise de Arendt, ao rejeitar a realidade partilhada com outros seres humanos, desemboca na dissimulação. A reflexão e suas desmesuras engendram, então, a inautenticidade que permitia a Rahel negar sua origem, reformular a si própria por meio de falsidades (preparando o solo para uma futura assimilação).
A exclusão social de Rahel, a sua solidão absoluta, tinham como contrapartida a reflexão –manifesta, como um sucedâneo da confissão, em escritos que tinham como marca característica a indiscrição e a ausência de vergonha. Nesse sentido, a reflexão não apenas aniquila a situação existente no momento, dissolvendo-a em disposição de ânimo, mas também confere a tudo que é subjetivo uma aura de objetividade, de publicidade, de interesse extremo. O resultado dessa indistinção entre o público e o privado é o empobrecimento de ambas as esferas: "As intimidades são tornadas públicas e assuntos públicos podem ser experimentados e expressos apenas no reino do íntimo –em última instância, em mexericos".
Entretanto, o alvo principal do livro não é esse ajuste de contas com o Romantismo ou mesmo a personalidade romântica de Rahel, capaz de entrelaçar num mesmo plano o dia e a noite, mas sim a tematização, a partir de uma representante típica da geração que sucedeu a Moses Mendelssohn –o iluminista judeu amigo de Lessing e Nikolai– da questão judaica.
A lição que Hannah Arendt nos sugere é que a impossibilidade de Rahel de se reconciliar com a ordem existente, expressa numa torrente ininterrupta de cartas confessionais, deriva de um impensado, de um fracasso que Rahel nunca –exceto no fim da vida, em cartas a Heine– quis assumir: das falhas do projeto iluminista alemão de assimilação social e cultural dos judeus.
A emancipação, nesse projeto, é pensada como a ascensão de pessoas marginalizadas e oprimidas, os judeus, à sociedade e à cultura iluminista. A assimilação se dá, então, pela via da salvação individual, por meio de um movimento no qual o judeu devia, antes de mais nada, renegar a sua origem e a sua condição. Ao tomar o judeu como inferior, mantendo o preconceito, esse projeto –encarado como tábua de salvação por setores significativos da comunidade judaica– abre caminho para o anti-semitismo como ideologia leiga do século 19 e 20, distanta do ódio religioso de outrora.
Rahel passou a vida tentando ser aceita no mundo dos socialmente reconhecidos, na sociedade que só considerava legítimo quem possuísse posições ou honra. Entretanto só conseguiu –o que à época era um feito– substituir a condição de pária pela de "parvenu". Só no fim da vida, após tantos esforços por assimilar-se, é que Rahel percebe –e com ela o leitor– que seu destino fora não algo de extraordinário, mas sim, tipicamente, um segmento da história judaica da Alemanha.

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