São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Rubem Braga e a ciência dos pormenores

FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante quatro meses Rubem Braga viveu e escreveu em Porto Alegre, cidade que escolheu "para refazer-se de envolvente crise sentimental, talvez a mais perturbadora de sua vida íntima", informa Carlos Reverbel, organizador de de "Uma Fada no Front".
Na capital gaúcha, em 1939, o cronista acompanhou espantado o início da Segunda Guerra e noticiou a morte de Freud; saudou a primavera na cidade e criticou as idéias separatistas e os projetos nacionalistas tresloucados de alguns imigrantes. As crônicas do período, publicadas na "Folha da Tarde", embora não tenham o arrojo de "O Conde e o Passarinho" e o "Passarinho" e de "Ai de Ti, Copacabana!", conseguem transmitir o humor pessimista e descrente, o sentimentalismo e o aguçado senso de justiça social que caracterizam o escritor.
Porto Alegre não chega a se transformar em personagem da crônica de Rubem Braga. Ele está decididamente interessado em pormenores. Sobre um pequeno assunto, como a especulação dos preços dos remédios, esbraveja com farta violência contra o Estado Novo e, nas entrelinhas, contra o gênero humano.
Pois Rubem Braga é um cético a quem só mesmo a natureza, com seus pôres-de-sol e chegadas de estação, e as pessoas humildes, como os maquinistas e os construtores, conseguem salvar. Também a guerra não ganha tratamento privilegiado em suas crônicas, ainda que o autor se refira aos "tempos de estupidez e de opressão" e aos "feios e tristes tempos que correm".
Numa visita a Joinville, ele escreveu: "Para me tornar mais perplexo sem me fazer incoerente, Deus encheu meu coração de um frio desprezo pelo nazismo e de um cálido amor pela Alemanha. Foi assim com uma espécie de melancolia que eu vos amei à primeira vista, doce Joinville."
Sobre a atividade diária de escrever crônicas e sobre a inevitável correspondência com seus leitores, Rubem Braga consegue transmitir suas melhores divagações. Torna-se irônico ou irado, chega a fazer em público uma autoflagelação, ao se definir como "poeta fracassado" e, cronista, por não se considerar literato e pertencer às "classes anexas" da literatura.
Sem muitos floreios verbais, vaticina em 1939 o talento de Carlos Scliar, declara a sua ojeriza ao tango, classifica Carlos Drummond de Andrade de "decididamente antipático, mas amorável e excelente" e critica Érico Veríssimo sobre a ilusão de pensar que se pode viver de escrever no Brasil, retratando o paupérrimo cotidiano de Graciliano Ramos: "Morava, como ainda mora, em uma pensão da Correia Dutra, onde eu também já morei e, como não fiquei devendo nada, estou no pleno direito de classificar de sórdida."
Em outras crônicas, consegue ser diabolicamente atual: em "Filhos do Rio Grande", comenta o trágico e gradual desaparecimento dos índios; em "Crianças com Fome" e "Sopa e Champanhe" escreve sobre os aspectos brutais da fome, sobretudo da fome na infância, e grifa em letras garrafais que "em Porto Alegre a maior parte das crianças escolares sofre de fome crônica".
Rubem Braga é nacionalista e indignado. As crônicas de "Uma Fada no Front" estampam sua cólera contra as injustiças e seu bucolismo um tanto impressionista, como em "Setembro, Chuva" e "Sol", na qual ele descobre "uma sexta-feira com alma de sábado" da mesma maneira como será possível encontrar neste livro o cronista mundano com vocação sublime.

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