São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Ensaio analisa a questão moral na teoria freudiana

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

É possível se extrair uma moral do pensamento freudiano? Embora todo psicanalista se sinta impelido a responder que sim –nossas escolhas, na clínica, parecem responder antes a princípios éticos do que científicos– uma observação cuidadosa das proposições fundamentais da psicanálise mostra que nenhuma resposta apressada, intuitiva, dará conta da questão.
Pensando rigorosamente como psicanalista, ou seja, para além das comodidades do senso comum (inclusive o bem estabelecido senso comum pós-freudiano), Ricardo Goldenberg dispõe-se a enfrentar essa discussão limítrofe entre os campos da filosofia e da psicanálise em dissertação de mestrado, recém-publicada pela editora Álgama sob o título de "Ensaio Sobre a Moral de Freud".
Quando Freud escreveu, no célebre capítulo 7º da "Interpretação dos Sonhos", que sempre vale a pena tomarmos conhecimento do "terreno pantanoso sobre o qual se erguem nossos mais sublimes alicerces morais", não estava sendo cínico a respeito dos ideais da civilização ocidental. Apenas cético quanto às possibilidades de seu cumprimento, e bastante moral ele mesmo, a meu ver, ao nos alertar sobre a enorme quantidade de sofrimento que a imposição de uma ética contra as pulsões pode acerretar aos sujeitos.
Na primeira parte de seu texto, "A genealogia freudiana da moral", Goldenberg desilude o leitor sobre a possibilidade de se traçar uma moral psicanalítica em bases kantianas, lembrando que o imperativo categórico, representado no modelo psíquico de Freud pelo `Super-eu' (*), consiste numa exigência impossível que só pode ser sofrida pelo sujeito (ou atuada, extrapsiquicamente) na forma de crueldade.
"Do ponto de vista da limitação das pulsões, isto é, da moralidade, pode-se dizer do `Isso' que ele é totalmente amoral; do `Eu', que se esforça por ser moral, e do `Super-eu' que pode ser hipermoral e tornar-se então tão cruel quanto somente o `Isso' pode ser" (Freud em "O Ego e o Id", citado pelo autor).
O mesmo "Super-eu" que impõe cruelmente ao sujeito a renúncia às satisfações pulsionais não deixa de lhe exigir que seja capaz de gozar. Goldenberg lembra a leitura lacaniana do pensamento do Freud ao citar (pág. 39): "Ninguém obriga ninguém a gozar, brinca Lacan, a não ser o `Super-eu'. Não seria exagero dizer a seu respeito que tudo o que não está proibido é obrigatório, o que nos deixa de frente para o deserto da liberdade humana".
Deserto para o qual a única resposta freudiana seria o convite a se renunciar à renúncia. "Isso não torna a psicanálise cínica", diz Goldenberg. "Cínico é o poder quando reprime a verdade que retorna do recalcado, cinismo que a psicanálise expõe abertamente através do objeto de fruição que o poder reprova" (pág. 24).
A pergunta pela moral freudiana poderia ser invertida depois da leitura da segunda parte do livro ("A ótica da psicanálise: responder pelo sintoma"). Em vez de "a psicanálise é moral?", deveríamos começar a nos indagar –"a neurose é imoral?"
Depois da leitura do texto de Goldenberg, eu diria que sim. O autor nos leva a concluir sobre a imoralidade da neurose enfatizando a idéia de "escolha de neurose" (sic, Freud) como sendo a escolha de modalidades de defesa diante do conflito edípico (este sim, universal e fundante) empreendidas pelo sujeito na tentativa de nada perder. Ou seja, de não ter que escolher. Ou seja, de não se comprometer.
O neurótico prefere a culpa (da qual, de um modo ou de outro, consegue gozar) à responsabilidade pelos seus próprios impulsos. Mas movido pela culpa e pela necessidade imperiosa de pagar por ela é que o neurótico se faz delinquente. "Delinquente por sentimentos de culpa", escreveu Freud ao mostrar que a culpa na neurose precede os atos transgressivos.
É por fazer de tudo para ignorar as razões de sua culpa que o neurótico não pára de se fazer castigar. É por querer livrar o `Eu' da "responsabilidade moral pelo conteúdo dos (seus) sonhos" (sic, Freud outra vez) que o neurótico tenta "desvencilhar-se da própria subjetividade depositando-a do lado do semelhante" (pág. 56).
"Fingir ignorar o `Wunsch' (desejo) que nos habita, torna-se, para Freud, a única covardia moral verdadeira", escreve Goldenberg (pág. 59), para mais adiante concluir que, se existe uma moral na psicanálise, ela está mais para o uso do paciente do que para uso do psicanalista. Aliás, é como analisando que todo psicanalista começa, ao se engajar na sua "escolha de cura", buscando ir ao encontro do sintoma e do desejo que ele encobre/realiza.
"A moral de Freud só pode aspirar à universalidade no momento em que revela sua máxima singularidade" (pág. 107), conclui Ricardo Goldenberg, encerrando este ensaio que revela, entre outras coisas, a voz singular de seu autor.

(*) Embora esteja pessoalmente mais acostumada a utilizar os termos id, ego e superego já tornado clássicos no Brasil pela tradução inglesa das "Obras Completas" de Freud, utilizo aqui os termos "Isso", "Eu" e "Super-eu", de preferência do autor.

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