São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Ensaios polemizam em torno da antropologia contemporânea

LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por mais que Luiz Eduardo Soares, em "O Rigor da Indisciplina", evite a definição "coletânea" e prefira entender seu livro como "um relato provisório de um trabalho em andamento", a própria escrita formaliza idéias que, em sua forma original, poderiam lembrar conversas desinteressadas. O autor faz desse tipo de proposta não um exercício de retórica, mas um estilo particular. O pretenso informalismo dos ensaios encobre um profundo rigor teórico.
As três partes que compõem o livro alinhavam diferentes objetos, questões e estudos apresentados em momentos diversos da carreira de Luiz Eduardo. Na primeira parte, destacam-se os ensaios mais teóricos, que procuram enfrentar dilemas vivenciados pela antropologia contemporânea, que se debate entre o relativismo e o universalismo, entre perspectivas iluministas e abordagens românticas.
O segundo bloco traz, com originalidade, o contexto da prosa literária e etnográfica. A tônica dos ensaios não é a busca de definições finais, mas o desafio de desfiar objetos diferentes e aceitar um certo encantamento diante da literatura.
O último conjunto reúne ensaios sobre religião. As "novas seitas", o Santo Daime, o misticismo ecológico são caracterizados como "movimentos culturais de experimentação", e não apenas como marcos de uma espécie de crise da racionalidade ocidental. O desafio é entender a nova consciência religiosa, essa atração recente pela fé religiosa "que vem tomando indivíduos de classe média, em geral com acesso a bens culturais razoavelmente sofisticados". Luiz Eduardo se nega a fazer coro ao ceticismo corrente e procura nesse fenômeno um sinal de vitalidade, uma forma de "indignação que rompe com a indiferença" reinante. Vale a provocação.
Mas, se muitas são as entradas, talvez seja possível retomar uma delas de forma tão "inconclusiva" quanto o projeto do autor. No âmbito de uma disciplina como a antropologia, que ficou conhecida –sobretudo antes dos trabalhos de Lévi-Strauss– por sua pequena tradição teórica, tem grande importância um trabalho que busque sistematizar um "jogo que ainda não acabou".
Além disso, frente à voga imprecisa da pós-modernidade, que colocou em questão o estatuto da verdade, assim como a hegemonia das antigas teorias antropológicas, pouco espaço sobrou para a afirmação de novos modelos de interpretação. A relevância da análise de Luiz Eduardo está justamente em, por um lado, anunciar os termos de uma dicotomia que marcou e quase paralisa o trabalho antropológico e, por outro, pensar em formas de mediação. Entre o antropólogo tradutor e o cientista decifrador de códigos, os modelos universais e a perspectiva relativista, o empirismo e o estruturalismo, talvez existam ainda alguns espaços comuns que permitam interagir subjetivismo e objetivismo.
Porém, às vezes é preciso `cutucar', como faz tão bem o autor. Se é instigante refletir sobre os impasses da antropologia, é também evidente que o movimento do texto leva o leitor a supor um final feliz. O círculo harmenêutico merece, segundo o autor, um lugar especial no interior desse debates, já que se localiza "entre hipóteses universalistas e a atribuição de sentido a fenômenos fragmentários ou unidades culturais particulares."
Não se trata aqui de questionar a seleção de um modelo, mas de questionar uma certa crítica "ao inimigo de plantão": o modelo estrutural. Com relação a esse paradigma, Soares supõe um consenso que não parece tão óbvio, como os ensaios deixam transparecer: "Há hoje um razoável consenso entre os antropólogos de que as posições universalistas conhecidas são lacunares e precárias na melhor das hipóteses". De fato, argumentos universalistas são descritos como vulneráveis, da mesma forma como ele admite não precisar "comprovar" esse tipo de afirmação.
As considerações acima são antes um desabafo do que um juízo. Afinal, a preocupação do livro não está em classificar, mas em buscar um projeto de tradução que dê conta ao mesmo tempo da diferença e da unidade, que possibilite a tradução de culturas mutuamente transparentes. Trata-se de buscar um alargamento do universo da razão, onde a diferença não seja vista como "desvio" ou "falta".
Enfim, se existe algo central nessa obra é que Luiz Eduardo teve coragem de sistematizar o que é só indagação, animando um debate teórico pouco efetivo entre os antropólogos.

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