São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Dois vícios contemporâneos

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Já que perguntar não ofende, eu pergunto: por que razão nos créditos de "Pentesiléias" aparece o nome de Heinrich von Kleist, se a autora da peça, Daniela Thomas, confessou publicamente nunca ter lido o texto do dramaturgo e romancista alemão?
Sua inspiração tampouco veio da "Ilíada", primeira vitrine da rainha das Amazonas morta por Aquiles, e sim do livro "Personas Sexuais", de Camille Paglia, em cujas páginas o mito grego e a inversão feita pelo dramaturgo (em sua peça quem morre é Aquiles) são fartamente discutidos. O mais lógico, portanto, seria creditar a Paglia o que afinal não veio de Kleist nem de Homero.
Mas se para efeito de marketing, o nome de Paglia soa mais promissor que o de um autor romântico do final do século 18, para efeito de currículo, o de Kleist se impõe por sua maior respeitabilidade artística. Em determinados circuitos culturais, um clássico alemão continua valendo mais do que uma pensadora pop norte-americana. Entre outras coisas, porque sua leitura exige mais empenho e sagacidade do leitor. Mark Twain estava num de seus melhores dias quando disse que clássico é aquilo que todo mundo gostaria de ter lido e ninguém quer ler.
Ler Kleist talvez seja uma experiência enfadonha para a maioria dos comuns mortais. E o mesmo pode ser dito de outros clássicos que, nos últimos tempos, também passaram a ser consumidos obliquamente, através do que a respeito deles foi escrito por ensaístas dotados, acima de tudo, de maior dose de paciência.
Dá menos trabalho ler o que Paglia teorizou sobre a inversão promovida por Kleist do que o próprio Kleist. Rende também mais dividendos, na medida em que toda exegese oferece uma série de inferências e relações não explicitamente contidas no texto analisado, cuja utilidade para determinado tipo de adaptação não deve ser desprezada.
(Pouco antes de morrer, Roland Barthes confessou-se envergonhado de ser muito mais lido do que os autores sobre os quais refletira em seus ensaios. Reflexão e reflexo compartilham o mesmo étimo. E como todo simulacro é, no fundo, um reflexo, não há como deixar de ver em "Pentesiléias" um espetáculo perfeitamente afinado com o nosso "Zeitgeist".)
Se ler Kleist desafia a preguiça que da humanidade tomou conta, com a inestimável ajuda da televisão, esforço muito maior demanda a leitura de "O Homem Sem Qualidades", do austríaco Robert Musil. Mais que um romance, é um romance-ensaio, complexo e caudaloso –razão pela qual nunca o adaptaram ao cinema nem, creio, ao teatro. Coube às nossas cores a honra de quebrar um desses tabus: há quase três semanas que o cartapácio de Musil materializou-se num espetáculo teatral, dirigido pela ousada e talentosa Bia Lessa e em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio.
Como era de se prever, a peça se estende por mais de duas horas. Contrariando as expectativas dos que leram ou ao menos ouviram falar do romance, trata-se de uma comédia. Por mais irônico que Musil tenha sido, "O Homem Sem Qualidades" nunca me pareceu um texto cômico ou potencialmente cômico. Para dirimir minhas dúvidas, recorri à reflexão alheia. Consultei Maurice Blanchot, George Steiner, Philippe Jaccotet, Edmonde Charles-Roux, Raymond Bellour e Jacques Bouveresse. A nenhum desses escoliastas de Musil passou a idéia de que o humor fosse uma de suas armas retóricas.
Presumo que Alberto Renault, autor da adaptação, e a diretora Bia Lessa tenham lido o romance, pois nada em contrário eles disseram. Ainda que argumentem, à maneira de Nietzsche, que conhecer a beleza de uma coisa significa conhecê-la necessariamente de modo errado, continuarei desconfiando de que a opção pela comédia expressa sobretudo o desejo (ou a necessidade) de tornar palatável um texto denso, longo e mais sisudo do que engraçado.
Palatável sem dúvida ficou –como costumam ficar quase todas as adaptações reducionistas e banalizadoras. Mas não o bastante para transformar a montagem num espetáculo comunicativo e plenamente inteligível. Ele me pareceu acima de tudo equivocado e confuso. Do clássico de Musil, o que de maior serventia se aproveitou foi o seu rótulo, a sua chancela, a sua auréola, o seu prestígio canônico.
Ao criticá-lo no "Jornal do Brasil", Macksen Luiz tocou na medula: "O espectador fica diante de uma colagem de cenas, que assumem um caráter levemente brincalhão sem referência sólida à obra que a originou. O espetáculo dá poucos indícios para que se penetre na obra de Musil, e afinal a encenação só se justifica se o teatro projeta sobre um outro meio expressivo uma interpretação diferente ou pelo menos uma reprodução dos melhores valores do modelo".
Luchino Visconti levou anos e anos burilando uma adaptação de "No Caminho de Swann", de Proust, para o cinema, até que um dia descobriu-se incapaz de levar a missão a bom termo. Humildemente desistiu da empreitada. Achava a prosa de Proust superior à sua capacidade de adaptá-lo ao cinema. Por incrível que pareça, ainda havia gênios modestos naquele tempo.
A queda de Daniela Thomas e Bia Lessa pelos clássicos é digna de louvores. Um Musil aqui, um Kleist ali, um Sófocles acolá –com a prática, afinaremos o gosto, produzindo espectadores de qualidades, capazes de distinguir, em meio à cacofonia reinante, o que veio para ficar e o que não foi à tôa para a lata do lixo. Com o tempo, quem sabe, teremos platéias suficientemente educadas para tolerar três horas de Musil sem demasiadas concessões à compactação e ao facilitário cômico.
Italo Calvino nos ensinou que todas as coisas definitivas são calmas, pois são livres do tempo. Os verdadeiros clássicos são assim, calmos porque seguros de sua perenidade. Calmos ainda que intensamente agitados por raios e trovões, como as peças de Shakespeare e o rock dos Beatles. Tenho notado uma certa e preocupante malversação da palavra clássico na imprensa daqui e de fora. Não por acaso, quem dela tem abusado com mais frequência são aqueles que não conseguem passar dois textos sem empregar o abominável anglicismo "cult", geralmente aplicado a obras por definição indignas de qualificação mais específica e conspícua.
Aos olhos de certa gente nascida na década de 60, qualquer ninharia com mais de 30 anos merece o status de clássico. Os verdadeiros clássicos dispensam essa ignara generosidade. Fico pasmo com o que volta e meia leio nas colunas de vídeo e filmes na TV (aqui, felizmente, entregue ao discernimento de Inacio Araújo). Dia desses, até "Desirée, o Amor de Napoleão", notória choldra reprisada pela Globo, foi tratada como "clássico" por um colunista carioca.
Quem entende do riscado riu. E quem leu os clássicos lembrou-se do velho Cícero. Não o padre, mas o tribuno romano, a quem devemos este alerta: "Desconhecer o que aconteceu antes do nosso nascimento é continuar sendo criança".

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