São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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Lula, PT e governabilidade

PAUL SINGER

O professor Guilhon Albuquerque, em artigo publicado na Folha (pág. 1-3) de 20/06 último, abre as baterias contra a candidatura de Lula à Presidência da República. Guilhon descreve o PT como um partido de militantes que "compartilha(m) uma doutrina simplificada de origem marxista", que sempre são levados "a radicalizar suas posições, a polarizar ao máximo com o adversário", e que por tudo isso preparam "desde já, o caminho das confrontações entre aparelho e intelectuais, entre militantes e opinião pública".
Como caricatura, até que não está mal. O PT realmente tem militantes e alguns deles, certamente uma minoria, apresentam características que, descontado o exagero, se assemelham à descrição de Guilhon.
São figuras admiráveis pela sua dedicação a causas coletivas e ao mesmo tempo irritantes pela fé inabalável em teses que nem sempre se justificam. Sua presença é imprescindível para que os avanços sociais possibilitados pela democracia de fato se realizem, mas jamais poderiam formar sozinhos um partido de massa, como o PT tende a ser cada vez mais.
Na realidade, o PT tem, entre sua militância, ativistas ideológicos com perfil caricaturado por Guilhon e ativistas de movimentos de massa, cuja sensibilidade para os anseios e opiniões do homem comum não-militante é essencial para o exercício de sua atividade.
A representatividade dos sindicalistas, por exemplo, depende de sua identificação com o trabalhador comum, com o qual mantém contato estreito e contínuo. Qualquer partido que seja amplamente representativo das classes trabalhadoras tem em suas fileiras os dois tipos de militantes –e a presença de ambos é necessária– além de outros tipos: o intelectual, o parlamentar, o organizador, o agitador cultural etc. etc.
Por isso o PT não é um partido ideológico e nunca quis sê-lo. Desde sua origem, o Partido dos Trabalhadores delimitou um vasto setor social –formado pelos que vivem do próprio trabalho– cuja representação se dispôs a disputar e seu crescimento contínuo demonstra que tem obtido êxito nesta disputa.
Significa isso que o PT não tenha limitações intrínsecas para ser capaz de governar? Essas limitações decorrem de ter uma base social própria, o que impede que se amolde às necessidades de quem exerce, em seu nome, o governo.
Infelizmente, quase todos os outros partidos brasileiros tornam-se instrumentos dóceis nas mãos de quem chefia o governo; não é que sejam capazes de governar –governar através deles é que é demasiadamente fácil. Quando um petista é eleito ao governo, o partido tem de dar sustentação ao seu governo e de cobrar dele fidelidade ao programa pelo qual foi eleito.
Daí decorrem dificuldades e contradições, mas também propostas inspiradas e criativas. Como o demonstram as experiências das prefeituras petistas, qualquer governo está sujeito a pressões incessantes do fisiologismo dos grupos dominantes, mas quase só os do PT se sujeitam também às dos movimentos populares, canalizadas frequentemente pelo próprio partido.
Guilhon aventa três possibilidades de Lula formar uma maioria de governo: compor maiorias que permitissem a aprovação, caso a caso, dos projetos do governo; fazer um grande acordo em torno de objetivos comuns "comportando evidentemente, elementos de consórcio fisiológico, e obrigando a uma revisão drástica de suas bandeiras mais simbólicas"; ou um governo minoritário, mas com grande mobilização popular.
Das três alternativas, a mais interessante e sem dúvida a preferida por Lula e pelo PT é a segunda: formar uma coalizão governamental com todas as forças políticas com as quais seja possível definir um elenco significativo de objetivos comuns. Não há motivo algum para supor que essa alternativa implique "consórcio fisiológico" e abandono de bandeiras. O que brilha pela ausência no artigo de Guilhon é a discussão desses objetivos comuns. Acontece que não é difícil encontrá-los, nos programas da coligação partidária que apóia Lula, mas também nos de vários partidos outros de centro-esquerda e de centro. Trata-se de eliminar a inflação, retomar o crescimento econômico e redistribuir a renda.
É claro que há divergências sobre como realizar esses objetivos, que têm como temática os limites de competência entre o público e o privado e mais especificamente entre Estado e mercado. Só acredita que essas divergências sejam insuperáveis quem sustenta posição ideológica a respeito, que me parece ser o caso do professor Guilhon Albuquerque. É por isso que ele conclui que as forças políticas em que Lula poderia basear seu governo "teriam que ser essencialmente corporativistas, formando uma coalizão nacional-estatista".
A idéia de que a divisão fundamental é entre os que são a favor e contra o Estado decorre de ideologia neoliberal, Lula e o PT reservam ao mercado e à iniciativa privada um papel essencial na realização dos objetivos comuns, o que não implica a privatização total do setor produtivo estatal nem na terceirização da maioria dos serviços hoje prestados pelo Estado.
Em suma, nem o PT é "um cartel de micropartidos marxistas" nem Lula é o mentor do "nacional-estatismo", que alguns imaginam. Em relação a reforma do Estado, a uma nova delimitação entre as esferas pública e privada, inclusive através da criação de uma esfera pública não-estatal, o PT e o seu candidato têm avançado bastante e por isso têm condições de negociar com os moderados dos dois lados, do lado liberal e do estatizante.
É que para Lula e seu partido, o objetivo é a justiça social e a redistribuição da renda; Estado e mercado são meios, e a justa medida de um e de outro pode ser negociada com os que não transformam um ou outro em fins em si.

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