São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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As regras dos bárbaros

JANIO DE FREITAS

Quem quer que raciocine com honestidade já esperava que acontecesse com os preços o que vem acontecendo. Isso estava inscrito na lógica sem compromissos, já tão conhecida, do vale-tudo que caracteriza o capitalismo bárbaro praticado no Brasil.
O aumento de 15,09% detetado pelo Datafolha só na penúltima semana antes do real, o que corresponde a aumento de 75,5% em um mês, não foge à regra, portanto. Assim como não fogem à regra, que apenas enunciaram em voz alta, as declarações arrogantes do presidente da Associação dos Supermercados, Levy Nogueira, e do dono de um desses manás, Abílio Diniz. Mas a regra que transforma liberdade de preços em libertinagem empresarial, comprova-se mais uma vez, não provém de uma só fonte de responsabilidade. Tem três: empresários, governo e meios de comunicação.
Da primeira não há o que ainda se precise dizer além das evidências. O governo, porém, difunde dubiedades – de uma parte, o presidente que se exalta com os aumentos e o palavrório de supostas ameaças, e, de outra, a realidade da prática. Mesmo na fase de aplicação do plano, e não só nos nove meses anteriores, de absoluta indiferença ante os aumentos abusivos dos preços e da inflação, a oportunidade para o que vem acontecendo foi dada pela equipe econômica e pelo próprio plano.
Ao lançar a URV, a equipe econômica não quis delimitar prazos para a conversão dos preços. Deixou-a a critério das "negociações entre os diversos setores da produção e do comércio", nas palavras do então ministro, para que "os preços se preparem para a chegada do real". Foi até mais longe, proibindo que os supermercados adotassem a conversão desde logo. Mas, se feita a conversão, os aumentos em URV é que tornariam mais gritantes as arbitrariedades abusivas. A equipe econômica criou o plano, e o fez deliberadamente, a via e o estímulo para a onda de aumentos alucinantes.
A Medida Provisória que introduziu o plano determinou que a adoção do real fosse comunicada com 35 dias de antecedência. Para quê? Outra vez, "para que os preços se preparem para a chegada do real". É evidente que "preparar-se" não queria dizer manter-se nem, muito menos, baixar. Quanto maior o intervalo, maiores as possibilidades de aumentos sobrepostos. Por que, então, 35 dias e não uma semana? Mais um estímulo especial aos aumentos.
O intervalo não foi de 35 dias, porém. No segundo fim-de-semana de maio, o já candidato explícito Fernando Henrique, necessitado de um fortificante para sua candidatura então cercada de embaraços, dava entrevista propondo o anúncio imediato da data do real. Apenas 48 horas depois, na segunda-feira 9 de maio, o ministro Rubens Ricupero cedia a seus assessores e divulgava o 1º de julho como data do real. Ficou claro o socorro combinado entre o candidato e a equipe econômica. Se, no entanto, 35 dias já dariam margem à prática de aumentos sobre aumentos, o anúncio com 53 dias de antecedência foi uma monstruosidade. Mas um presente para o candidato do plano, com direito a foto ao lado do presidente e do ministro no anúncio palaciano da data.
A compreensão eterna do jornalismo econômico com as conveniências do empresariado não arrefeceu nem agora, quando mais uma vez cai de amores por mais um plano salvador. Na falta de explicação ainda mais colaborativa, lê-se e ouve-se que os aumentos se dão porque os preços estavam desalinhados e precisam realinhar-se para o real. Mas, primeiro, quem desalinhou os preços, senão os aumentos que se sucedem a pretexto de realinhamento? E, segundo, onde é que está acontecendo realinhamento, e não ainda mais desalinhamento? Bem, não será por isso que se vai quebrar uma tradição jornalística. O importante é a permanência da cobertura às práticas empresariais e o aguçamento da linguagem, que já abriu mão até dos preceitos de educação pessoal, para atacar qualquer propósito – ainda que simples propósito sem efeito – de restrição às regras do capitalismo à maneira de bárbaros.

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