São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Semana de cão prepara entrada do real

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Volto a escrever nesta coluna para registrar alguns eventos da semana que passou e partilhar a minha angústia como economista com os meus leitores e amigos, de quem não posso manter-me afastada numa hora como esta.
Vamos aos fatos, com apenas alguns breves comentários.
1. Ilustres donos de supermercados explicam por a (custos) + b (margens financeiras) porque têm de subir os preços e como esta imaginosa invenção que é a URV desorganizou os mercados finais e provocou uma dispersão de preços dos bens de consumo corrente nunca vista na história do país.
Segundo o Procon, o mesmo produto chega ter dispersão de preços superior a 500%. Isso significa que podemos esperar inflação em real em julho superior à prevista pelos institutos estatísticos do país, sempre que os supermercados resolvam manter estoques reduzidos e "alinhar" os preços para cima, a pretexto de corrigir as suas margens.
2. A taxa de inflação verdadeira, medida em URV-real, não cairá em julho. Ao contrário, subirá. E só por má-fé e ignorância se pode comparar uma inflação em cruzeiros (da ordem de 47% ao mês) com uma taxa em URV (real) que tem-se mantido em torno de 1,5% desde a criação da URV.
Com o novo choque de preços desta semana, a inflação em julho deve alcançar, ou quem sabe superar, os 7%, muito superior à dos últimos três meses.
A cesta básica, que é a relevante para a grande maioria da população pobre, já subiu de US$ 80 (URV, real) para mais de US$ 100 (URV, real), enquanto o salário mínimo continuará nominalmente em pouco mais de US$ 60 (URV, real), com o que a possibilidade de ganho com a passagem de preços para o real já foi para o espaço.
3. O governo pensa forçar a queda de preços em julho-agosto mediante vários procedimentos que aparentemente não envolvem negociação, mas vários tipos de ameaças de aplicação da lei de abuso econômico (grupo de Palácio), mais uma política monetária dura (equipe econômica).
A primeira solução agradará mais a opinião pública e pode até ser explorada para fins eleitorais, mas é de eficácia econômica global duvidosa. Quanto à política monetária, qualquer que ela venha a ser, dificilmente provocará uma queda de preços absolutos.
Com juros altos, estoques reduzidos e sem horizonte confiável de estabilidade político-econômica, o mais provável é que os empresários diminuam a produção, reduzam o emprego e subam as margens unitárias de lucro bruto.
Isto é o que, em linguagem de economista, se chama um "choque de oferta negativo", seguido ou não de uma recessão provocada pela queda do investimento.
4. Por falar em investimento, o ministro do Planejamento proibiu as empresas estatais de investir recursos próprios, isto é, sem pressão no orçamento fiscal, porque o investimento faria subir o crescimento do PIB e isso seria (pasme-se!) inflacionário.
O fato de que as estatais produzam serviços e insumos básicos (como energia, transporte e telecomunicações), cuja escassez de oferta possa rebentar com as tarifas depois de dezembro, não tem importância. Tudo deve ser feito para garantir um pseudoplano de estabilização que deve durar pelo menos os próximos três meses.
Alguém perguntará: para que parar os investimentos, que nada têm a ver com a temida "bolha de consumo"? É que as empresas estatais devem depositar os recursos sobrantes à ordem do Banco Central e receber dívida interna extramercado, supostamente para esterilizar liquidez, mas na realidade para garantir caixa que cubra parte dos juros da dívida interna oferecida em mercado pelo BC em nome do Tesouro para comprar reservas internacionais.
5. A dívida interna subiu mais de 40%, em termos reais, nos últimos seis meses, apenas para premiar os especuladores que ganham uma fortuna, entrando e saindo à vontade no "mercado de capitais", aberto e desregulado. Os juros pagos a esses cavalheiros representam cerca de 60% do total das despesas operacionais da União nos últimos trimestres.
O ministro do Planejamento talvez desconheça estas cifras e estes fatos, por sua pouca experiência no cargo, mas todos os agentes financeiros, nacionais e estrangeiros, conhecem os dados básicos e, apesar de apoiarem o candidato do governo às próximas eleições, defendem com afinco os seus interesses num país onde as leis não funcionam (nem as jurídicas, nem as de mercado) e cada um leva o que pode enquanto é tempo.
6. As pressões para mudar o jogo maior continuam em todos os níveis. Por exemplo, na sua recente visita, o secretário de Comércio norte-americano deu declarações sobre privatização das telecomunicações, esperando que estas não se constituam num contencioso semelhante ao da lei de patentes.
Com essa atitude imperial, ignorou a nossa Constituição que, não por acaso, não foi revista de acordo com as intenções do nosso aliado preferencial.
Este episódio e outros, como o da pressão para indicar o atual presidente mexicano para a presidência da nova organização internacional do comércio, dão bem a medida das batalhas sucessivas que a nossa diplomacia é obrigada a travar quotidianamente, para tentar preservar o nosso auto-respeito como nação soberana, num quadro internacional tão adverso.
Só de passagem, convém lembrar que uma vitória na Copa trará alívio aos nossos corações de torcedores-sofredores, mas não aumentará o nosso prestígio na grande nação do norte, onde o nosso esporte preferido não é particularmente apreciado e a nossa imagem só faz piorar com as péssimas notícias sociais, policiais e políticas das últimas semanas.
7. Por falar em notícias "político-policiais", o PFL continuou triunfante sua ação "saneadora" no Congresso, eximindo seus "anões" envolvidos nos escândalos do Orçamento de culpa.
Com o que, afinal, só foram punidos uns poucos congressistas, na maioria do PMDB quercista, que continua em rota para o desastre eleitoral, a menos que as elites político-empresariais mudem de opinião sobre o sucesso do plano e de seu candidato.
Em todo o caso, a grande imprensa deu pouco destaque ao fim melancólico das comissões de inquérito do Congresso, talvez porque o assunto "ética" anda em baixa no "mercado".
Apesar disso, vários analistas políticos e editoriais continuam considerando indispensável uma "sólida" maioria no Congresso para "governar" o país, esquecendo-se que essa maioria existiu estes últimos anos e até aqui só tem ajudado a desgoverná-lo.
8. Voltando ao real, falta discutir o destino das suas "âncoras". A primeira, e mais debatida, é a cambial. Foi em nome dela que se atraiu mais de US$ 25 bilhões de capital de curto prazo, se endividou o país e se fez pagar ao Tesouro uma conta de juros selvagem, desfazendo o precário ajuste fiscal conseguido com o FHC-1.
Para que? Para nada. A equipe econômica reconheceu que as divisas com a entrada do "smart money" não são de confiança e não permitem a dolarização da economia, contentando-se com a fixação temporária do câmbio.
Esta precária "âncora" cambial deverá durar o que for possível e será supostamente coadjuvada por uma "âncora monetária", cuja natureza é, pelo menos, controversa.
Com juros altos e metas quantitativas da base monetária, a explosão da dívida interna e o desequilíbrio fiscal progressivo são inevitáveis. Com o que só sobra uma "âncora", a salarial.
9. Para tentar segurar "a âncora salarial", a equipe econômica reuniu-se com a Justiça do Trabalho no intento de convencê-la a adiar julgamentos des dissídios de importantes categorias sindicais, entre agosto e setembro.
Só falta agora atribuir o fracasso previsível do plano à luta por reposição de salários na data-base. Convém lembrar que a própria medida provisória que reiterou o "plano" admitia negociações livres e coletivas nas datas bases.
Mas, afinal, no atual estado de desorganização em que se encontram os preços e os contratos, é de se esperar qualquer tentativa de fazer ceder a pressão pelo elo mais frágil, o dos contratos de trabalho.
10. Não posso esconder a tristeza profunda que me invade por não poder torcer pelo plano, como fiz com o Cruzado, e o sofrimento de ter de analisar, por dever de ofício, as políticas econômicas praticadas neste país.
Lembro-me com saudade da minha infância, quando podia repetir as palavras dos evangelhos: "Bem-aventurados os pobres de espírito e os mansos porque deles será o Reino dos Céus".
Não podendo me enquadrar mais em nenhuma das categorias da salvação e não querendo que a ira e o desânimo invadam a minha alma, só me resta invocar a sentença maior do grande crucificado: "Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem!"

Durante a campanha eleitoral, MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES estará escrevendo esta coluna uma vez por mês. Após este período, a colunista retomará a periodicidade normal.

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