São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Mandela mostra o caminho para Lula

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Plano Real está nas ruas. É a sexta ofensiva antiinflacionária de impacto desde o fim do regime militar e o máximo que se pode esperar dela, com um mínimo de realismo, é que seja não o arremate, mas o início de algo mais duradouro.
A missão do plano é servir de ponte garantindo a travessia e a estabilidade até a posse do próximo presidente. A grande incógnita agora é saber o que nos aguarda do outro lado da ponte.
A versão final do plano confirma a opção do governo por uma estratégia mais flexível do que a aventada inicialmente.
Em vez de partir para o "tudo ou nada", como no programa argentino, a equipe econômica preferiu fazer uma aposta menos ousada –fixou metas monetárias para os próximos meses e manteve as portas abertas para rever os compromissos assumidos.
Ao flexibilizar o plano, abrindo mão de compromissos irreversíveis na área cambial e monetária, o governo curvou-se diante de uma realidade inelutável.
O horizonte político do país é hoje particularmente limitado e incerto. Por mais boa vontade que se tenha, é impossível abstrair do fato de que o Plano Real está sendo lançado no ocaso de um mandato-tampão e a apenas três meses da eleição presidencial.
É por isso que, independentemente de qualquer avaliação técnica, o real nasce com um gigantesco ponto de interrogação sobre o seu futuro.
Que a inflação vá cair nos próximos meses, ninguém duvida. Em matéria de terapia antiinflacionária, o alívio imediato tem sido a nossa especialidade.
A questão é: e depois? Entre os espectros rondando o berço da nova moeda brasileira, o quadro sucessório é sem dúvida o mais ameaçador.
É verdade que tanto o "timing" do plano –claramente calculado para vingar na boca de urna– quanto a decisão do ex-ministro Fernando Henrique de sair candidato foram fatores que contribuíram para complicar as coisas, aumentando a confusão entre estabilização e processo sucessório.
O ideal teria sido um plano deflagrado há pelo menos um ano e um ministro que, além de manter Itamar sossegado e à distância, ficasse até o fim.
A maior fonte de incerteza sobre o futuro do real, contudo, é a total indefinição dos demais candidatos à Presidência quando se trata de assumir uma posição clara e coerente frente ao desafio número um do país que é erradicar de uma vez por todas da praga inflacionária.
A sociedade brasileira não vai se livrar da interação destrutiva em que está metida enquanto não criar um padrão monetário estável para as transações econômicas.
A inflação cria uma atmosfera de desconfiança e um clima de emergência permanente que dificultam a cooperação e inviabilizam qualquer programa de ação de longo prazo. Mas a julgar pelo andamento das campanhas, é como se o problema já estivesse resolvido ou pudesse ser alegremente esquecido.
Salta aos olhos, nesse sentido, a espantosa omissão do PT de Lula. O programa econômico do PT faz proezas incríveis quando se trata de prometer a geração de milhões de empregos e aumentos generosos do salário mínimo.
Mas a maior façanha de todas, sem dúvida, é convidar o eleitor a fingir que a inflação brasileira não existe ou é, no fundo, um problema menor. Perto disso, tudo mais é fichinha. O silêncio berra.
O fato é que o PT não tem, até o momento, nada que se pareça com um programa de estabilização.
Os rompantes ocasionais de Lula e seus assessores sobre o tema –"controle social da inflação" ou "a inflação é política, só termina no dia em que houver um acordo entre nós"– servem apenas para confirmar a impressão de que o PT não tem mesmo a mais pálida idéia sobre como enfrentar o maior problema nacional.
É pena que a liderança do PT não tenha aproveitado sua recente visita à Africa do Sul para aprender, como o recém-eleito presidente Nelson Mandela, a mais relevante lição contemporânea –a arte de combinar racionalidade macroeconômica com iniciativas ousadas de política social.
Não faz muito tempo, o partido liderado por Mandela era bem parecido com o PT de Lula. Pregava o repúdio da dívida externa, defendia a estabilização da economia, bradava contra o neoliberalismo e hostilizava o capital externo com pérolas tão grotescas quanto estas que Lula continua espalhando por aí: "O capital é covarde e só vai para onde pode ganhar".
Já no final da campanha presidencial, no entanto, o tom do discurso começou a mudar. Mandela percebeu que a chave do sucesso de seu governo, inclusive na área social, estava na criação de um clima de estabilidade propíco à realização de novos investimentos.
O elemento crucial para isso era assegurar que o livre mercado seria respeitado e que as finanças públicas seriam administradas com prudência, firmeza e competência.
Mas o sinal mais inequívoco da mudança foi a sábia e ousada decisão de Mandela de manter, em seu governo, o ministro da Economia e o presidente do banco central que haviam ocupado estes postos durante a última fase do governo de minoria branca presidido por F.W. de Klerk.
O primeiro orçamento do novo governo –coincidentemente divulgado no mesmo dia em que Mandela recebeu a visita de Lula– foi saudado pela comunidade financeira internacional como um "modelo de moderação".
O que é mais surpreendente nisso tudo é que Mandela, com 27 anos de prisão nas costas e ampla maioria parlamentar, tinha todos os pretextos do mundo para embarcar numa orgia insana de populismo, vingança e distributivismo inconsequente.
Afinal, a África do Sul está saindo de um regime racista absurdamente iníquo, tem uma dívida social ainda pior que a nossa e a inflação –em torno de 7% ao ano– não inspira maiores cuidados.
Prevaleceu o bom senso e o respeito à lógica da situação econômica. De certa forma, a conversão de Mandela à ortodoxia financeira e fiscal repete a trajetória percorrida pelo PRI mexicano nos anos 80 e pelo Partido Justicialista argentino após a eleição de Menem. O passado nem sempre condena.
É até provável que Lula, mais cedo ou mais tarde, também chegue lá. Talvez seja uma questão de tempo. Para o Brasil, é claro, quanto antes melhor.

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