São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Os moedeiros falsos

JOSÉ LUÍS FIORI

(continuação)
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Como consequência natural, aderiu à estratégia de ajustamento do FMI e do Banco Mundial.Mas sua opção mais importante não foi esta. Dispunha de um elenco de alternativas políticas para implementar essa mesma estratégia. Mas, diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia revolucionar o sistema político e social brasileiro aproximando-o do social-liberalismo de Felipe González, FHC preferiu o caminho de Oraxi, Vargas Llosa ou Mitsotakis, e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL que lhe garante o apoio natural dos demais partidos conservadores num eventual segundo turno. Uma aliança que, obviamente, não se explica por razões puramente eleitorais, pois afinal Collor e Berlusconi já demonstraram que nesse campo é possível obter melhores resultados por caminhos mais diretos e "modernos".
O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar a tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este o verdadeiro significado direitista de sua decisão que, aliás, não é de hoje, mas data de maio de 1991, quando apoiou a reorganização do governo Collor em aliança com o próprio PFL de ACM e Bornhausen.
Se ali não teve sucesso, foi por obra do destino ou de Mário Covas, mas as cartas já estavam lançadas. Desde então, costurou de forma brilhante e eficiente a adesão de quase toda a grande imprensa e do empresariado, mas sobretudo os apoios internacionais que faltaram a Collor, haja vista, além das avaliações de risco das grandes consultoras financeiras publicadas pela imprensa internacional, o desfile recente de personalidades mundiais (públicas e privadas) do neoliberalismo que têm vindo dar apoio ao programa de estabilização e reformas de FHC. Faltam-lhe ainda, contudo, duas coisas: o apoio das lideranças políticas regionais que vêm negociando com imensa dificuldade a partir do PFL e, sobretudo, o dos eleitores que pretende obter através do sucesso instantâneo de seu Plano Real.
Em síntese, FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington, valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária. E, com isto, em nome do seu realismo, na verdade está se propondo, ainda uma vez, a refundar a economia sem refundar o Estado brasileiro. E aqui sim, contradiz um ponto essencial de suas idéias e de seu passado reformista.
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Não nos interessa discutir aqui porque o programa FMI/Bird pode ser virtuoso para o empresariado e catastrófico para um país continental e desigual como o Brasil, mas apenas nos ater aos dilemas internos e específicos de tal proposta, e de sua experimentação concreta, para assim esclarecer o significado mais radical da opção de FHC. Mas para isto devemos voltar brevemente a Washington.
Não mais às sugestões práticas do seminário de John Williamson, mas às conclusões do estudo comparativo de J. Nelson e S. Haggard, sobre um grupo de 25 países que antecederam o Brasil na adesão ao "Washington Consensus". E aqui todas as experiências apontam numa mesma direção: se o projeto não avança sem "credibilidade", não há credibilidade possível sem governos com autoridade centralizada e forte. Mas por que chegaram a esta conclusão de que era indispensável recorrer à política e a Estados fortes para alcançar o "mercado quase perfeito"?
Primeiro, porque na maioria dos países que já aplicaram as políticas e fizeram as reformas recomendadas não houve a esperada recuperação dos investimentos. E isso porque, em segundo lugar, o apoio empresarial, interno e externo, não passa do entusiasmo retórico para a cooperação ativa, indispensável inclusive para a primeira etapa da estabilização sem ter garantias sobre as reformas liberalizantes.
Em terceiro lugar, como consequência, aliás, todos os países que lograram vencer a etapa da estabilização contaram com uma ajuda externa politicamente orientada; no caso chileno, 3% do PIB durante cinco anos, de ajuda pública mais um aporte equivalente, durante três anos, por parte dos bancos comerciais; 5% do PIB durante cinco anos no caso da Bolívia; 2% do PIB durante seis anos no caso do México, etc.
Mas, em quarto lugar, mesmo quando obtiveram ajuda externa e se estabilizaram, estas economias "reformadas" atravessaram profundas recessões, perdas significativas da massa salarial e aumento geométrico do desemprego, os famosos "custos sociais" da estabilização.
Em quinto lugar, mesmo ali onde houve retomada do crescimento, esse tem sido lento e absolutamente incapaz de recuperar os empregos destruídos pela reestruturação e abertura das economias. Sendo que para culminar, em sexto lugar, no caso das experiências bem comportadas, as etapas de estabilização e reformas tomaram de três a quatro anos cada uma, e até uma década para a retomada efetiva do crescimento.
Neste quadro, como é óbvio, fica difícil obter credibilidade para as políticas neoliberais junto ao empresariado, seu aliado indispensável, e pior ainda, junto aos trabalhadores. Segue-se daí a conclusão inevitável: a longa espera pelos eventuais resultados positivos das políticas e reformas preconizadas pelo FMI e Bird demandam uma estabilização prolongada da situação de poder favorável às reformas. Solução que desemboca, entretanto, num novo problema: o da viabilização eleitoral duradoura da coalizão "reformista". Eis aí a questão: como fazer com que o povo compreenda e apoie por um longo período de tempo, e apesar de sua dura penalização, a verdade dos "technopols"? Ou em termos mais diretos: nestas condições, como ganhar eleições e manter tanto tempo uma sólida maioria no Congresso Nacional?
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Frente a este desafio, descartada a "alternativa Menem" (usar um programa para a campanha eleitoral e outro no governo) defendida entusiasticamente no seminário de Washington por Nicolas Barlette do International Center for Economic Growth, os estudos apontam para três caminhos conhecidos:
a) o dos partidos capazes de assegurarem a vitória e a maioria parlamentar por mais de uma década, o que em geral se deu em sociedades com menores índices de inflação e/ou de desigualdade social;
b) o da existência de condições excepcionais, de guerra ou recuperação democrática, favoráveis ao logro de acordos sociais e políticos entre partidos, sindicatos e empresários;
c) ou então, como os estudos mencionados indicam em quase todos os casos dos países com economias de alta inflação, grande fragilidade externa e extrema desigualdade social, o apelo a regimes autoritários permanentes ou "cirúrgicos", como foi o caso da Turquia no início dos 80 e do Peru mais recentemente.
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FHC, desde 1991, pelo menos, optou claramente por este projeto de modernização neoliberal e por um bloco de sustentação de centro-direita. Neste sentido, segundo nos relata a experiência, optou por uma estratégia socioeconômica que tem gerado ou aprofundado os níveis preexistentes de desigualdade e exclusão social. E além disto, para culminar, também optou para levar à frente este projeto anti-social e quase sempre autoritário, através de uma coalizão política que foi sempre autoritária e que já logrou forjar, antes e durante a era desenvolvimentista, esta nossa sociedade que ocupa hoje o penúltimo lugar mundial em termos de concentração de renda.
Neste sentido é que se pode concluir, sem ofender a lógica, que FHC realmente aderiu a um projeto de "aggiornamento" do autoritarismo anti-social de nossas elites.
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Mas agora o jogo já começou e as coisas já evoluíram. Hoje, FHC se transformou em refém de seus próprios "technopols". Como sua proposta neolibeal satisfaz o empresariado mas deixa pouca margem para costurar as alianças com as velhas elites políticas regionais, e como a situação dos eleitores piorou enormemente desde que assumiu o Ministério da Fazenda, só lhe resta esperar pelo milagre dos três meses prometidos pelas cabeças "iluminadas" de sua equipe econômica.
Neste ponto, aliás, o Brasil produz uma novidade que talvez possa ser relatada no próximo seminário de Washington: em vez de silenciar sobre os efeitos perversos do programa, faz-se de seu sucesso antecipado de curtíssimo prazo a grande arma para obter a vitória eleitoral... Mas é por isto também que neste caso o plano de estabilização já nasceu de forma autoritária, de tal forma que, desde agora, a condução independe do conhecido senso público do ministro Ricupero.
Lançado num período eleitoral quando, por definição, as escolhas são livres e os resultados indeterminados, o pré-anunciado sucesso do Plano supõe que só possa haver um ganhador, ou pior, supõe que, quem quer que seja o ganhador, terá que se submeter aos "technopols", a menos que queira enfrentar uma hiperinflação explícita, com fuga de capitais, sobrevalorização cambial e desequilíbrio fiscal gerado pelas altas taxas de juros. Para não falar que, nestes três meses de engodo, tudo o que faz parte normal de uma campanha eleitoral será considerado subversivo do ponto de vista do Plano... Sendo desnecessário acrescentar, neste momento, que mesmo que FHC ganhe as eleições dificilmente terá a maioria parlamentar de que falam, o que nos candidata fortemente, segundo a experiência relatada, a prolongarmos no tempo a concepção originariamente autoritária do Plano.
Neste sentido, ao contrário do que alguns defendem, FHC está dando uma nova e sofisticada colaboração para a irracionalidade da política brasileira.
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E quanto à moeda que nasce, depois de chegar a Brasília protegida pelos tanques do Exército, seguirá sendo uma moeda virtual ancorada numa paridade cambial, que, por sua vez, está atrelada a futuro político impossível de ser assegurado de antemão. Sorte teríamos neste sentido se sobre ela pudéssemos apenas parafrasear Helmut Schmidt (quando disse aqui no Brasil, comentando a possibilidade de sucesso imediato das reformas liberais no Leste europeu): "Ter-se-ia que ser professor de Harvard para crer nestas tolices". Nossa situação é ainda mais triste, porque temos que reconhecer que nossos "technopols" conseguem reunir à "tolice dos professores de Harvard" a irresponsabilidade dos moedeiros falsos do André Gide.

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