São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Um outro Benjamin

JEANNE MARIE GAGNEBIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns meses atrás, Marcelo Coelho se queixava, com toda razão, nesta mesma Folha, de uma certa "inflação de estudos sobre Walter Benjamin"; pedia um pouco mais de "parcimônia na citação de sua obra". Ora, temos agora no importante trabalho de Willi Bolle, "Fisiognomia da Metrópole Moderna", mais um estudo sobre esse pensador judeu, alemão, marxista, teólogo e poeta que parece fascinar, justamente por sua pluralidade de rostos e de estilos, nosso fin-de-siècle desorientado. Só que o trabalho de Willi Bolle vai a contrapelo das apropriações apressadas e das citações complacentes; fará, sem dúvida, data na recepção de Benjamin no Brasil.
Resultado de muitos anos de pesquisa –seu primeiro esboço se concretizou na tese de livre-docência, "Tableaux Berlinois", defendida em 1984 na USP– o livro propicia um exemplo daquilo que pode ser "echte Germanistik", um autêntico estudo de literatura alemã: reconstrói com paciência e clareza a emaranhada história da recepção dos textos de Benjamin, em particular do "Passagen-Werk", essa famosa obra incompleta, truncada, "censurada"; desenterra numerosos textos desconhecidos de Walter Benjamin, que têm o grande mérito de chacoalhar o clichê (muitas vezes uma projeção narcísica nossa) de um autor desencantado, pessimista, supremamente melancólico. Penso nos textos radiofônicos para crianças ou para "grande público" que revelam um Benjamin lúcido, irônico, cheio de humor e de ternura, um Benjamin mais próximo que nunca de seu amigo Brecht.
Graças a um grande cuidado de contextualização histórica, ao conhecimento da linguagem político-cultural em vigor na República de Weimar, o livro de Bolle propõe, igualmente, uma interpretação muito fina e crítica de algumas categorias benjaminianas que se tornaram quase chavões: por exemplo, a análise da figura de flâneur, na sua ambiguidade essencial de oponente aos ritmos capitalistas de produção e, simultaneamente, de "Mitlãufer", aquele que "anda junto" no meio da multidão, prefiguração do "oportunista anônimo" que se integrará perfeitamente nas grandes coreografias de massa do fascismo. Todos esses elementos são amparados por uma vasta informação, cujo grande mérito é de saber aliar erudição e leveza, oferecendo ao leitor pistas seguras de investigação e de discussão, além da longa e instrutiva bibliografia que encerra o volume.
Todas essas qualidades "acadêmicas" ou "científicas" são sustentadas por uma dupla hipótese de interpretação que torna tanto as análises de Bolle como os textos estudados de Benjamin surprendentemente políticos, claramente "engajados". Essa hipótese poderia ser descrita da seguinte maneira: os textos de Benjamin sobre a modernidade, em particular sobre a "fisiognomia" (uma categoria cuja história, desde suas origens em Lavater, passando por Goethe e até os Surrealistas, é reconstruída na Introdução) das grandes cidades modernas nunca são meras descrições históricas ou historicistas, mas deveriam sempre ajudar numa leitura crítica não só do passado (a Paris do Século 19), mas também do presente; do presente de Benjamin, isto é, da época conturbada da "passagem da República de Weimar para o Terceiro Reich", mas, igualmente, do presente de um autor posterior a Benjamin, vivendo a dramática explosão das grandes cidades do Terceiro Mundo. Assim, Bolle interroga os textos de Benjamin não só sobre aquilo que dizem de maneira explícita, mas também sobre aquilo que "revelam", segundo a metáfora benjaminiana oriunda da técnica fotográfica. Trata-se de uma denúncia da ascensão, contemporânea à vida de Benjamin, do nazismo e, igualmente, das falhas de várias tendências políticas ou intelectuais de esquerda; com mais ousadia teórica, trata-se, também, daquilo que esses ensaios poderiam nos revelar sobre o futuro, desconhecido por Benjamin, mas sempre tematizado por Bolle, das megalópoles da "periferia".
Essa hipótese de leitura orienta a feitura desse livro cuja organização não deixa, aliás, de lembrar mimeticamente, seu próprio tema: a grande cidade moderna em sua pulsação incessante, mas também, às vezes, na sua proliferação arbitrária e na sua fascinante confusão. As três partes do livro mesclam, intencionalmente, duas temáticas e duas perspectivas. Duas perspectivas: o olhar crítico de Benjamin sobre seu próprio presente político através de seus diversos estudos, tratem eles da Paris do Século 19 , do drama barroco do Século 17 ou da literatura contemporânea; e o olhar paralelo sobre o período correspondente no Brasil, notadamente através do Modernismo, em particular Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Duas temáticas: o desenvolvimento da cidade moderna através dos vários escritos sobre cidades de Benjamin; aqui não parece haver uma reflexão correspondente deste lado do oceano –ou melhor: talvez o livro de Bolle pretenda suprir essa falha; e a historiografia da modernidade, notadamente nas suas oposições centro-periferia (a partir do tema da viagem de navio num poema de Baudelaire e no "Macunaíma") e arcaico-moderno (a partir dos surrealistas franceses, em particular o "Paysan de Paris" de Aragon e de "Grande Sertão: Veredas").
Ora, as principais reservas que poderíamos enunciar em relação a este livro dizem respeito a esse projeto teórico, ambicioso e generoso, mas talvez um pouco "forçado". Pois esses numerosos paralelos nos parecem fornecer muito mais elementos instigantes para um estudo de literatura comparada entre o Modernismo brasileiro e a reflexão benjaminiana sobre a Modernidade que realmente compor o quadro de uma teoria historiográfica. O próprio autor, aliás, assume reiteradas vezes, o caráter "comparativo" de seu trabalho; em outra ocasião, também o define, com bastante clareza, como sendo "um ensaio" que "se situa no campo intermediário entre as histórias da literatura e da cultura –das quais se distingue pelo seu caráter monográfico– e, por outro lado, as biografias sobre Benjamin, das quais se diferencia pelo enfoque de determinadas forças históricas e questões do imaginário social".
Nossa pergunta maior a esse livro será, portanto, a seguinte: será que esse emprendimento permite, realmente, elaborar um conceito mais consistente de historiografia? A fidelidade de Bolle à reflexão benjaminiana sobre as ligações entre história literária e história dominante, à sua "desconstrução" de alguns monstros sagrados e sacralizados como Goethe ou Baudelaire, à suas investigações do imaginário social e de suas formas fantasmagóricas como indícios de desejos coletivos, ideológicos ou utópicos, essa fidelidade profundamente simpática, aliás, precisaria ser mais que reafirmada para garantir o êxito de um projeto teórico bastante ambicioso, o projeto de uma historiografia da modernidade a partir da perspectiva privilegiada dos (ainda) "vencidos". Assim, o trabalho de Bolle me parece muito mais convincente nas suas análises históricas do contexto de produção da obra benjaminiana (a excelente segunda parte) que nas tentativas de encontrar em Benjamin um modelo historiográfico, válido também para nós. A problemática de uma nova historiografia, de uma outra escrita da história (e, portanto, de uma outra história) é, sem dúvida nenhuma, absolumente essencial na obra de Benjamin, desde o livro sobre o drama barroco até as famosas teses póstumas "Sobre o Conceito de História".
Mas ela me parece –e aqui tomo a liberdade de iniciar uma discussão talvez de "especialistas" com meu amigo Willi Bolle– muito mais se desenvolver através da experimentação de novos caminhos de escrita (montagem, imagens dialéticas, fragmentos, tratados quase medievais, como o prefácio ao livro sobre o drama barroco), ou, igualmente, através da reabilitação de conceitos por assim dizer renegados pela tradição dominante (alegoria, tradução, modernidade, barroco, reprodução técnica). Essa preocupação com a historiografia, se ela é, sim, essencial, não desemboca, porém (diria eu!), numa proposta historiográfica acabada; e isso não só porque Benjamin não o tivesse conseguido, apesar das "cobranças" de seus mais diversos amigos, de Brecht a Scholem passando por Adorno. Mas por uma escolha de sobriedade e de lucidez teóricas: perdidos que estamos nos atalhos de uma historiografia "marxista" triunfalista ou "burguesa" pretensamente universal, devemos, primeiro, ajustar contas com as tentações de totalização apressada que esses modelos configuram; e isso antes de propor outros modelos, outras totalizações. Por isso temos tantas oscilações em Benjamin (será ele teólogo? marxista? marxista-teólogo?), tantas citações acumuladas que parecem não levar a nada (como os inúmeros fragmentos do "Passagen-Werk"), também tantas "iluminações" súbitas, mas sempre, não é por acaso, no tamanho menor de uma imagem dialética, da percepção rápida de semelhanças privilegiadas, de imagens de pensamento (Denkbilder) encerradas em si mesmas como as mônadas sem janelas de Leibniz. Oscilações, acúmulo, iluminações e imagens que nos encantam, certamente, mas também nos impacientam pois estamos (como Adorno, como Brecht, como Scholem!) ansiosos por modelos maiores e mais coerentes que nos livrariam, mesmo que provisoriamente, da nossa desorientação tão teórica como prática. Assim, gostaríamos de poder deduzir da obra de Benjamin regras para uma "história dos vencidos" (quando só falou da "tradição" –descontínua, interrompida, recalcada– "dos oprimidos") ou mesmo regras de uma "historiografia alegórica", uma expressão que, salvo engano, não se encontra em Benjamin.
Gostaria de ressaltar, no pensamento de Benjamin, esses momentos não de indecisão (como muitos de seus contemporâneos, Benjamin enfatizou, várias vezes, os riscos e a necessidade da "decisão" política e ética), mas, melhor, do que poderia ser chamado de irresolução assumida, pois apressar uma (re)solução significa, na maioria das vezes, mais contentar a vaidade do "sujeito" que estar realmente atento aos "objetos". Essa atenção paciente, Benjamin sempre a reinvidicou como uma das tarefas maiores do pensamento. Ela orienta muitas das belas análises históricas, filológicas, literárias, "fisiognômicas" de Willi Bolle. Às vezes, porém, ela tende a desaparecer nos bastidores do texto, talvez porque esse livro generoso também coloca em cena um drama ainda mais cruel que o barroco: o drama que se vive no palco das grandes cidades, ao mesmo tempo miseráveis, belas e monstruosas, do nosso "Terceiro" Mundo.

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