São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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A obra insuportável

CAIO TÚLIO COSTA

Com a aproximação da Bienal de São Paulo, o maior evento das artes plásticas no Brasil, em outubro, torno pública minha proposta de obra especial para a mostra. Especial porque a Bienal pretende, nas palavras de seu curador, "discutir o suporte na obra de arte". Já apresentei a idéia num almoço em que estavam presentes as autoridades da Bienal. Ninguém me levou a sério. Talvez porque expliquei muito rapidamente a coisa.
É muito simples. Se o caso é mesmo discutir a questão do suporte, acho necessário ser radical, ir às raízes de sua existência. Só assim será possível avançar na teoria da arte, na intelecção do que é arte e qual o seu papel no mundo.
O suporte é tudo aquilo que sustenta a obra: a tela de algodão untada de gesso que recebe a pintura; a tinta que leva seus tons; a moldura; a parede que acolhe o quadro; o teto que sustenta o móbile; o monitor que exibe a videoarte; as microondas que carregam o sinal de televisão; o celulóide do filme; o bronze ou o mármore da escultura; o chão que a aguenta; no limite, o ar que envolve uma instalação. São infinitas as possibilidades de suporte.
Discutir com radicalidade o suporte é desconstruí-lo, atacar o cerne de sua existência. Ou seja, existe obra de arte sem suporte? Se não existe, pode vir a existir sem ele? Qual a importância do suporte na história da arte?
O que pretendo demonstrar –se tiverem a ousadia de me deixar expor– é que a obra de arte pode conter em si mesma a discussão radical do suporte. Não falo de "metaobra", aquela besteirinha de a obra discutir a si mesma como tentam fazer vários "instaladores" pós-Duchamp. Nem falo de algo parecido com a "forma negativa" da obra de arte.
(Quem não se lembra do monumento Aschrott-Brunnen, erguido em praça pública da cidade de Kassel, na Alemanha, destruído pelos nazistas e reconstruído em sua forma negativa? Ou seja, a fonte de água que tinha no centro uma pirâmide esguia, neogótica, de 12 metros de altura, foi refeita, enterrada de ponta-cabeça dentro da terra e a água da fonte passou a correr para dentro da pirâmide.)
Nem me refiro a intervenções espertas como a de Ann Hamilton, em Nova York, na qual uma moça sentada à mesa, sobre chão atapetado de crinas de cavalo, apaga as letras de um livro, destrói a materialidade da escrita e, por consequência, aniquila também imagens e conceitos...
Falo de algo distinto: a obra de arte que prescinde do suporte e, portanto, o supera. Daquela obra que não destrói o suporte porque ele não existe. Que exatamente por isso coloca em dúvida o suporte, questiona a sua identidade, problematiza a existência dele.
Esta é a obra que pretendo apresentar na Bienal, se burocratas e artistas tiverem o peito de enfrentar. E mais não adianto porque este papel no qual a revista está impressa, essas letras que você lê neste momento, tudo isto pode servir de suporte à obra que desmonta o suporte.
E como nem sequer o ar pode envolvê-la –e portanto suportá-la– nada mais posso dizer dela.

Ilustração: "Bottle Rack", 1914, de Marcel Duchamp

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