São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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KARLA QUEBRA GELO

CONTINUAÇÃO

Tudo ia bem para a brasileira Karla Apovian em janeiro de 1984. Em passeio de esqui sobre a neve, ela sai de Cervinia (Itália) e ruma para Zermatt (Suíça). O percurso pelos Alpes é para ser feito em sete horas, sem surpresas. Eis que surge uma descida forte, seguida de uma leve subida. Karla desliza na montanha de gelo a 80 km/h para pegar impulso e atingir o topo da lombada. De repente, dá de cara com um buraco, se desequilibra, cai. Voa neve para todos os lados. No impacto, gira incontáveis vezes no ar antes de se estatelar. Susto. Mas Karla sai ilesa.
Sem exagero, pode-se dizer que esse é o único grande tombo na história da moça, atual campeã brasileira de esqui na neve. "É difícil eu entrar numa gelada. Antes de decidir as coisas, penso muito", diz e, num instante, solta um sorriso de derreter. Karla não precisa mesmo esquentar a cabeça ou ficar de cara feia. O esporte e as vitórias não são uma prisão para ela. Leva vida de donzela. Mora com os pais num palacete de quatro quartos, quatro salas decoradas à francesa e piscina, no Morumbi, zona sul de São Paulo. E vive viajando. Aos 23 anos, já está no quarto passaporte.
Estudante de direito da FMU, nas férias de julho e janeiro costuma frequentar as "quentes" estações de esqui do Cone Sul americano, Europa e Estados Unidos. Tira também pequenos descansos no resto do ano: há 20 dias, em pleno período de aulas, foi praticar mergulho –sua segunda paixão– em Cozumel, no Caribe mexicano. Nada mal.
Apesar das facilidades e dos mimos de berço –a família é dona da rede Lavabem, que soma 22 postos de gasolina–, ela não transpira arrogância. Ka, apelido familiar, praticamente dispensa maquiagem. Nem precisa. No dia-a-dia, se veste com discrição e elegância, combinando roupas simples –como jeans e camisetas. Poderia ter um desses carrões importados com que tanta gente sonha. Mas não tem. "Não sonho com carro", diz. Pilota um Santana. Poderia também ficar em casa, sem trabalhar. Mas ajuda o pai nos negócios.
É verdade que Karla não se lembra da última vez que pegou um ônibus. "Não sei. Acho que só andei uma vez." Ok, ela desconhece o sofrimento de um Penha-Lapa. Agora, para admirar o visual de Machu Picchu, no Peru, não poupou esforços. Enfrentou 14 horas no Trem da Morte, de Puno a Cuzco, e, em seguida, subiu a pé a 4.115 metros nos Andes, atingindo as ruínas incas.
Durante a caminhada de 54 km com amigos, chegou a mascar folhas de coca para diminuir o mal-estar causado pela altitude –um velho costume peruano. O "trekking", em outubro do ano passado, durou três dias e duas noites –bem frias.
Frio, porém, não é problema para Karla: ela gosta. Depois de 1983, então, nem se fala. Foi nesse ano que começou a aprender a gingar na neve seu corpo enxuto, de relevo certinho. Deve isso a um estalo do pai, Rubens, que de repente resolveu levar toda a família em férias para gélida Cortina D'Ampezzo (Itália). Foram 20 dias na estação de esqui. Karla tinha 12 anos. "Foi duro", diz. "O começo é uma tortura. Você não consegue parar em pé em cima daquele negócio e não entende como alguém pode gostar daquilo". Compensou. Nos Alpes, forjou o futuro de campeã.
Não que seja uma campeã muito dedicada, fanática, que treine muito. "Não sou apaixonada por competição. Gosto mais de esquiar a passeio. Meu irmão, sim, leva a sério", admite. Marcelo Apovian, 21, é o atual vice-campeão brasileiro de esqui na neve. Nas Olimpíadas de Inverno de 1992, em Albertville (França), obteve o 60º lugar. É uma façanha para quem mora num país tropical e precisa viajar para treinar –um gasto que se soma ao do equipamento (só para começar a se equipar, um esquiador gastaria hoje com esquis, botas etc. US$ 1,5 mil).
Karla não é uma esquiadora da linhagem de uma Aviva Azar, 22, pentacampeã brasileira de esqui (1988 a 1992), que só largou as disputas porque virou mãe. Começou a competir meio no vai-da-valsa, "de brincadeira", há quatro anos. Antes, só assistia os campeonatos nacionais –disputados em setembro em Las Le¤as (Argentina) desde 1988. "Uma vez, acabaram me inscrevendo. No ano seguinte, me inscreveram de novo. Fiquei em terceiro lugar, depois em segundo", conta. Em 1993, ganhou.
Mesmo sem fissura de ganhar, conservando seu jeito "cool", Karla não faz feio quando participa de torneios internacionais. Compete na modalidade slalom gigante –a mais suave das categorias. Se não fica entre as primeiras, também não chega a parecer um personagem de "Jamaica Abaixo de Zero" –filme baseado em fato real, que conta com ironia a participação de jamaicanos numa Olimpíada de Inverno. Tampouco faz lembrar o que aconteceu com esquiadores brasileiros no Mundial de 1987, na Suíça. Perguntados sobre a diferença entre eles e a seleção brasileira de futebol, responderam, sinceros: "A mesma que existe entre o Oceano Atlântico e uma banheira".
Competições não pautam a agenda de Karla. Como regra, esquia de janeiro a fevereiro em Aspen (EUA), Courchevel (França) ou Lech (Áustria), e em julho, na Argentina ou no Chile. O resto do ano passa no Brasil. Nos fins-de-semana, evita o litoral. "Gosto do mar, mas odeio areia." Prefere a casa da família em Campos do Jordão (SP), paisagem mais próxima de suas prediletas no mundo. Lá, foge da farofa do centrinho. "Não saio. Tomo sol, faço sauna e, à noite, convido amigos, converso, jogo, tomo vinho na lareira." Nada de TV, seja onde for. "TV, só a CNN. A pior coisa da TV é a TV", fuzila.
Sob o sol ou no gelo, a campeã é vaidosa. Curte sua pele com perfumes e creminhos. É fanática por cheiros –principalmente os sutis. "Sou hipersensível". Mas seu maior vício é viajar. Os múltiplos carimbos em seus passaportes parecem não ter garantido diversão suficiente: planeja dar a volta ao mundo, em viagem de "no mínimo, seis meses".
Nem sempre seus giros pelo mundo caem bem. Criada ouvindo histórias sobre a quintessência da terra natal dos avós –a Armênia–, teve uma grande decepção ao visitar o país, logo depois que o império soviético ruiu. "Não voltaria lá. É muito pobre, triste, as pessoas não têm o que comer. Era inverno, só tinha energia três horas por dia e não havia aquecimento. Acho que meus avós vão ficar chateados, mas é o que penso."
Com a mesma franqueza, escapa da avalanche de cantadas que tem levado. É exigente, embora se sinta "meio abandonada". Acaba de trincar um namoro de nove meses. O motivo? "Não sei direito", despista. Talvez o rapaz tenha esquecido de lhe dar o que mais gosta: atenção. O incauto foi para o gelo.

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