São Paulo, terça-feira, 5 de julho de 1994
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Dois fantasmas profetizaram jogo de ontem

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Amigos, não há catástrofe sem linguagem própria!"
Começo este artigo como as crônicas esportivas de Nelson Rodrigues, já que escrevo no domingo, o jogo do Brasil x Estados Unidos foi segunda, e esta pobre coluna sai hoje, na terça-feira. Assim, vos escrevo do passado e porque vos escrevo de anteontem, consultei meu telefone intemporal com Nelson Rodrigues e pedi para ele profetizar o que ia acontecer. E assim ele me descreveu o jogo de ontem:
"Amigos, não há catástrofe sem uma linguagem própria! Assim como não há vitória sem hinos, guirlandas e papel picado. O futebol brasileiro sempre viveu de estrelas solitárias. Os outros são indispensáveis como coadjuvantes preciosíssimos, mas quem decide a sorte nas batalhas é o craque. Em 1958 foi assim com Garrincha, com Pelé, com Didi, em 62 foi assim com Mané."
"O empate de 1 a 1 com a Suécia foi nossa benção redentora. Por ele, Parreira foi pressionado e então liberou a seleção do tal futebol 'coletivista' que os europeus inventaram, tendo colocado Mazinho"... "Vai colocar?", perguntei. "Vai", me respondeu o velho Nelson no terreno baldio em que fomos conversar.
"E o time se eriçou mais que as cerdas bravas do javali. Parreira, aconselhado pela lentidão vacum de Zagalo, queria varrer a graça, a originalidade dos nossos clássicos e peladas. Para impor um futebol-força ao Brasil teríamos que mudar o brasileiro por dentro."
"Os americanos comem bem há 500 anos. O brasileiro come mal há 500 anos. Não temos massa física para corridas delirantes. Possuímos tudo que falta ao craque gringo: a fantasia, o elã criador, a molecagem, a paixão. E foi assim o jogo", me profetizou o NR.
"Antes do jogo, envenenados pela crônica esportiva, os jogadores se sentiam um bando de barnabés perto dos Estados Unidos; não se sentiam com a camisa apaixonada da seleção, mas vestidos de trapos flamejantes, ou de tangas sumaríssimas, como índios. Esta era a verdade implacável e feroz: sentíamo-nos como miseráveis caboclinhos perto daquele time de búfalos louros."
"Nosso Brasil boiava no lago da Dívida Externa como uma vitória régia. Por isso, a crônica esportiva profetizou que teríamos medo dos ricos americanos, principalmente no dia 4 de julho, o 7 de setembro deles. E assim, entramos em campo exalando cavo complexo de inferioridade."
"Mas o milagre começou a acontecer numa progressão fulminante. O time, que se fechara em sórdida timidez, virou um time de granadeiros bigodudos, patriotas. O brasileiro quando se desamarra de suas inibições é único em fantasia, invenção e improviso. E diante dos Estados Unidos, meu bom Jabor, o time parecia querer se vingar de séculos de inferioridade. Foi como se baixasse o santo de Garrincha em cima de todos."
"Nossos jogadores, especialmente Bebeto e Romário, com o meio de campo ágil como faunos de tapete, começaram a botar guizos nos americanos. Cada marcador de jogador brasileiro estava mais carregado de guizos que um 'rigoletto' de lança-perfume. O público exultou como se todos fossem Manés, com suas fintas deslumbrantes, e a cada drible sentíamos que se quebrava o surto inflacionário aqui no país."
"Durante 90 minutos no Brasil ninguém matou, ninguém roubou, ninguém traiu. Os adultérios cessaram, as anas kareninas, as madames bovarys nativas fizeram uma pausa no pecado. Ninguém assaltou chofer de táxi; só nos interessava a vitória brasileira. Disse que ninguém matou, e acrescento: também ninguém morreu."
"Cada brasileiro vivo ou morto, nas praças, na frente das TVs, ou no fundo da cova, torceu ferozmente. Em todas as sepulturas, as ossadas, as caveiras ouviam seu radinho de pilha. Pois valeu a pena. Ganhamos dos americanos!" (Nelson se recusou a me dar o resultado: "Não sou periquito de realejo" –me disse ele, a mim que mal entendo de futebol, que era seu mero "cavalo").
"Mas, amigos, ganhamos", continuou Nelson, "ganhamos dos americanos com penacho de dragão da independência e esporas de galo de briga porque estamos também com o dólar igual ao real. Isso fez o povo brasileiro se sentir reabilitado de suas frustrações seculares. Cada um de nós era um rei Lear a arrastar pelo chão a púrpura de seu manto!"
Isso foi a profecia da vitória, que Nelson, um dos meus mortos informantes, me disse. Eu estava nesta euforia, quando um outro morto favorito, inesquecível, Glauber Rocha, invade nosso bate-papo intemporal e interrompe Nelson Rodrigues. Na vida viva, só vi os dois juntos uma vez. Os dois se cheiravam com respeito, como dois vira-latas na esquina.
Nelson dizia: "O Glauber me olha e só fica pensando de mim: 'Reacionário'!". Glauber adorava o greco-pernambucano e berrava: "Vou filmar o 'Vestido de Noiva' como ópera!" –mas isso não interessa. Importa que Glauber invadiu o terreno baldio como cabra pastando, onde Nelson baixara.
E berrava rindo: "Nelson está mentindo! Não foi isso que aconteceu. O Brasil entrou em complexo colonial no estádio e tremeu de medo 'sub', diante dos imperialistas que são os americanos. Parreira é a imagem do pequeno-burguês oportunista e colonizado pelo futebol europeu e prudentezinho que tem medo de errar."
"Falta grandeza épica em Parreira. O que vimos foi a sabujice medrosa que temos diante do Pentágono e de Wall Street. Os caboclos respeitam o americano porque o americano-caubói não erra o tiro."
"Hollywood nos vê como uma população de 'chicanos', quando dublam a Sônia Braga fazem sotaque de porto-riquenha nela. Tarzan nasceu da cabeça colonialista de E. Rice Burroughs, e nós somos os crioulos que trememos diante do time de Roberts Redfords. Perdemos ontem porque não suportamos a vitória, como um fardo. Os portugueses nos ensinaram a gostar da derrota."
"Rapaz, o Glauber Rocha está mentindo para você porque ele morreu e não sabe que o comunismo acabou!", atalhou Nelson. "Fidel devia estar amarrado no pé da mesa bebendo água na cuia de queijo Palmira!".
O riso selvagem de Glauber provocava: "Perdemos porque nos sentimos índios diante de um exército de John Waynes!"
"Que burrice de sociólogo!", berra Nélson. "Glauber acha que um time é comandado pelas relações de produção... O técnico dele é o Marx, e o Marx era uma besta!"
Glauber provocava mais: "Falo-anal-vagina-uterinamente Nelson desmonta hipocrisias da sagrada família recalcada, mas não entende nada de futebol. Perdemos porque somos uns miseráveis com medo de Wall Street!"
"Mentira! Vencemos!", diz Nelson, "ganhamos com olé, e, quando nossos craques dançavam como cisnes de Tchaikovski, até a inflação bateu palmas. O Glauber quer ver o escrete apedrejado como uma adúltera bíblica! Mas ele te mente, nós vencemos por um resultado deslumbrante. Algo mudou ontem no destino do Brasil. Começamos a ser grande potência. Todos estamos com a fronte erguida como profetas, e cada crioulinha favelada e descalça tem um halo de Joana D'Arc na cabeça!"
Quem estava certo, no meu terreno baldio espírita, Nelson ou Glauber? Você, leitor, já sabe. E se Glauber acertou, saiba que agora estou sentado no meio-fio chorando lágrimas de esguicho.

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