São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Cometas nem sempre anunciam fim do mundo

SÉRGIO AUGUSTO
"WE ARE DOOMED!"

Quantas vezes não ouvimos esta exclamação, nas telas e nos gibis?
Geralmente traduzida como "Estamos perdidos!" ou algo assim, a expressão tornou-se um delicioso clichê de seriados e aventuras de ficção científica. Quando alguém diz "we are doomed!", pode contar que um cataclismo se aproxima. Quase sempre vindo do céu.
Tanto pode ser um foguete mortífero despachado do planeta Mongo pelo imperador Ming, como um raio letal providenciado por Lex Luthor ou pelo doutor Silvana. Às vezes, é apenas um bólide.
Apenas, o cacete. Um bólide de mau jeito pode causar terríveis danos à Terra. Que o digam os dinossauros, supostamente exterminados há milênios, dizem, por um toró de meteoritos.
Meteoritos, bólides, estrelas, cometas, asteróides –para os comuns mortais, pouca importam as diferenças: se vem do espaço em arrasadora velocidade e é enorme e pesado, há que se esperar pelo pior. Ou seja, o fim do mundo. Ao menos foi isso (ou quase isso) que previram alguns clássicos da literatura futurista, como "Olga Romanoff", de George Griffith, e "The Star", de H.G. Wells, ambos escritos em plena era vitoriana.
No primeiro, um cometa colidia com a Terra, destruindo sua superfície. No segundo, uma estrela mudava de rumo e –como a de outra célebre fantasia apocalíptica, "When Worlds Collide", de Philip Wylie e Edwin Balmer, publicada em 1933 e transformada em filme ("O Fim do Mundo") 18 anos depois –reduzia a pó o nosso planeta.
Céu. O problema está lá. Sempre esteve, aliás. Remoto e enigmático, nele o homem acomodou suas divindades. Para ele, o que lá existe ou de lá procede tem lastro divino e possui poderes sobrenaturais. Todas as cronografias mitológicas conhecidas estão de alguma forma ligadas à observação do céu e seus astros.
Também foi olhando para cima que os primeiros filósofos pré-socráticos palpitaram sobre a origem do universo. Bem antes que se soubesse o que de fato é uma estrela ou um cometa, estes dois fenômenos celestiais já eram tidos como oráculos mais infalíveis que as vísceras de animal examinadas pelos hierofantas.
Em sua cintilação muitos se acostumaram a ler mensagens dos deuses e dicas sobre o futuro. A astrologia, inventada na Mesopotâmia, desenvolvida no Egito e sistematizada na Grécia, nada mais é que uma leitura do destino através de corpos celestes, certo?
Os chineses foram pioneiros na pratica de observar estrelas e cometas para fins agourentos. Viviam a captar no céu presságios horripilantes como pragas, pestes, guerras e moléstias afins. Ainda faltavam 1.059 anos para Cristo nascer quando eles descobriram um cometa que mais parecia uma estrela em forma de vassoura, e a partir da cauda especularam sobre os seus efeitos na sorte de dois soberanos que então se engalfinhavam numa cruenta batalha.
Graças aos chineses, por exemplo, foi possível rastrear a história do cometa Halley desde 240 A.C., e a de tantos outros, igualmente periódicos embora menos famosos. Por ser desmedida a crença nas faculdades proféticas de estrelas, cometas e eclipses (ideogramaticamente representados por um dragão tentando engolir o sol), acompanhar o movimento de objetos celestes tornou-se uma atividade exercida com extremado zelo na China milenar. Afinal, uma leitura equivocada das mensagens divinas podia causar transtornos de consequências funestas, sobretudo para o adivinho.
Não há duvida: a astronomia lucrou um bocado com a superstição oriental.
Na Europa, o grau de superstição não era menor. Bastava uma estrela cadente riscar o céu para que os romanos –e não apenas os romanos– começassem a fazer conjeturas sobre o futuro, geralmente pessimistas. Vez por outra, abria-se uma exceção. Em 44 A.C., logo após o assassinato de Júlio César, avistou-se nos céus do império uma estrela cadente, que os romanos cismaram tratar-se da alma do imperador a caminho dos deuses, e mais nada.
Nem o Vaticano, tão seguro de si e submisso à vontade de um único deus, escapou das paranóias escatológicas estimuladas pela ignorância popular a respeito das coisas do céu e do reino das estrelas. Preocupado com a suspeita generalizada de que o cometa visto a 29 de junho de 1456 traria aos terráqueos fome, peste e miséria, o papa Calixto 3º providenciou uma bula contra o intruso astro, na qual encarecia aos católicos que rezassem para que aquele "símbolo da ira divina" se desmilinguisse logo e nunca mais voltasse a importunar o nosso planeta.
Mas ele voltou. Pois é de seu feitio voltar de 76 em 76 anos. O cometa que perturbou o sono do papa era o Halley.
Até 1910, sua passagem sempre gerou pânico em diversos países. No Brasil, nem tanto –muito menos em 1910– e menos ainda em 1986. Aqui sempre preferimos recebê-lo com homenagens e gozações. Todas as sociedades carnavalescas do Rio e o rancho Ameno Resedá brincaram com ele nas fuzarcas de 1911 e 1912. O clube dos Fenianos, que por sinal tinha o sol como símbolo, chegou a desfilar com um carro cuja alegoria se intitulava "O Beijo do Halley". E que ostentava o seguinte texto:
"A Terra, no seu rodopiar diário, voltando-se ora para um, ora para outro, deixa-se beijar, a impudica, por esse grandioso vagabundo dos espaços."
Um dos efeitos dos cometas, pelo visto, é fazer vibrar a alma dos poetas.

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