São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Quem tem medo do neoliberalismo? - 1

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um espectro ronda a campanha presidencial –o espectro do neoliberalismo. Todas as potências eleitorais do país unem-se numa santa aliança para conjurá-lo. De um lado, os feiticeiros ideológicos da tribo petista acusam Fernando Henrique de haver aderido ao credo neoliberal e sucumbido a um sinistro "Consenso de Washington". De outro, a nata pensante da tribo tucana rechaça o ataque vil e afasta a pecha infame de neoliberal.
Duas conclusões decorrem dessa singular polêmica. A primeira é que, embora órfão na disputa presidencial, o neoliberalismo é um espectro ameaçador e contra o qual esperneia, de forma quase obsessiva, boa parte da "intelligentsia tapuia". A segunda é que ainda prevalece na opinião pública brasileira em geral –e nas tribos petista e tucana em particular– a mais pavorosa desinformação acerca do que venha a ser o neoliberalismo.
Não se trata, aqui, de defender ou atacar as idéias neoliberais. Trata-se apenas de conhecê-las um pouco melhor e compreender o que significam, até para que se possa fazer uma crítica consequente de sua aplicabilidade à nossa realidade. O furor acusatório e a satanização de rótulos não levam a nada. A velha esquerda brasileira continuará estéril e esclerosada enquanto não tiver a humildade intelectual de estudar e esforçar-se para entender aquilo contra o que deseja se opor.
A primeira coisa que chama a atenção na polêmica entre petistas e tucanos é a absoluta falta de referências específicas a pensadores neoliberais. O neoliberalismo é bombardeado de acusações genéricas, mas ninguém se arrisca a citar um nome sequer de autor que tenha defendido tais idéias. A razão é simples –alvos tão vagos e mal-definidos são fáceis de "acertar". Dar nome aos bois revelaria o despropósito da acusação e deixaria o acusador nu.
O que é, afinal, o neoliberalismo e quem são esses temíveis neoliberais? Um bom começo é o prefixo "neo". O liberalismo econômico tem mais de dois séculos de história intelectual. O neoliberalismo é "neo" não apenas porque é um fenômeno do pós-guerra, mas também porque se diferencia de outras correntes e momentos do pensamento liberal, como a fisiocracia francesa, o iluminismo escocês, o utilitarismo da economia clássica inglesa e o evolucionismo.
O próprio neoliberalismo compreende uma enorme variedade de correntes e posições. Sua ascensão mundial, a partir dos anos 80, está associada a um movimento intelectual para o qual convergiram pelo menos três escolas de pensamento: 1) a austríaca ou subjetivista (Popper, Hayek e Kirzner); 2) a monetarista de Chicago (Friedman, Stigler e Becker); e 3) a escolha pública de Virginia (Downs, Buchanan e Tullock).
Há muita coisa em comum unindo essas correntes de pensamento. Todas elas se ergueram contra o alargamento das fronteiras econômicas do Estado, o paternalismo e o cerceamento da liberdade individual. Todas defenderam o mercado regido pelo sistema de preços contra o planejamento central, a economia mista e o ativismo macroeconômico. Daí seu prolongado ostracismo na maré alta da "nova esquerda" e do "grande consenso keynesiano", até meados dos anos 70, e daí sua inclusão no campo neoliberal.
Ao mesmo tempo, qualquer pessoa minimamente familiarizada com suas idéias sabe que essas correntes neoliberais possuem preocupações temáticas e abordagens teóricas distintas, existindo, de fato, questões centrais sobre as quais elas estão em franco desacordo entre si. Quando o assunto é moeda e política monetária, por exemplo, austríacos e monetaristas estão em pólos opostos. Hayek e Friedman alimentam uma fé no poder transformador das idéias que é contestada por Stigler e incompatível com a teoria da escolha pública.
O que é certo, contudo, é que nenhum dos expoentes contemporâneos do neoliberalismo defendeu aquele "laissez-faire" tão puro quanto ingênuo –coisas do tipo "Estado-vigia" ou "anarquia mais o delegado"– que seus críticos petistas e tucanos teimam em lhes imputar, ainda que ao abrigo confortável de vaguíssimas generalizações.
Isso não quer dizer, é claro, que o Estado mínimo –incluindo a interrupção pura e simples das transferências de renda extramercado via Estado do Bem-Estar– não tenha os seus adeptos ideológicos. Este ponto de vista tem sido defendido clara e abertamente por um grupo de intelectuais, mas que de forma alguma se confunde com o espectro neoliberal.
Os verdadeiros defensores do Estado mínimo são os anarco-capitalistas ou libertários (Nozick, Rothbard e David Friedman, o filho rebelde de Milton). Estes sim, na tradição de Marx e Herbert Spencer, sonham com o dia em que homens livres irão se desvencilhar do Estado enquanto poder coercitivo e o exercício odioso da autoridade política dará lugar à simples e transparente "administração das coisas".
Não é à toa, aliás, que os libertários advogam, com argumentos sofisticados e lógica implacável, a total descriminalização do comércio de drogas, a privatização da Justiça e o fim de todos os controles em fronteiras nacionais. Mas os libertários estão para o neoliberalismo assim como o PC do B está para o PT. Não é este, com certeza, o espectro medonho em torno do qual petistas e tucanos travam sua pseudo-polêmica de surdos.
A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo.

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