São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Dr. Osires e o futebol

LUÍS NASSIF

O episódio da liberação da bagagem da seleção brasileira é significativo por dois aspectos. Primeiro, pela constatação de que finalmente instaurou-se no país a ética do tributo, como decorrência do amadurecimento do conceito de cidadania e como resposta ao trabalho isento de um homem direito –o ex-secretário da Receita Osires Lopes Filho.
A reação provocada pela demissão do dr. Osires é um marco, que sepulta definitivamente o velho estilo de governantes deliberarem livremente sobre dinheiro público, como se fosse sua propriedade particular.
O desgaste sofrido pelo governo –e em particular pelo ministro Rubens Ricupero– estabelece um novo padrão de risco para atitudes desse tipo. Ao mesmo tempo, pode significar uma garantia extra para coibir novos desvarios de Itamar.
Não se espere que o presidente aprenda com a reação da opinião pública. Itamar é o desmentido vivo à universalidade do princípio de Pavlov. Mas, da parte do ministro Ricupero, o episódio estabelece um novo referencial de pressão, para fazê-lo mais resistente às arremetidas tresloucadas de Itamar.
Coronelato
O segundo aspecto relevante do episódio é expor de maneira evidente o estilo de poder que comanda o futebol no país, que está à mercê de um coronelato da pior espécie.
Trata-se de uma estrutura de poder estadonovista, paraestatal, cuja reserva de mercado é garantida pelo Estado, através de regulamentações que impedem a renovação e a fiscalização.
Em outros tempos, o futebol era meramente instrumento de manipulação política. Hoje em dia, tornou-se atividade econômica das mais relevantes e continua imune a qualquer espécie de fiscalização.
São frequentes as acusações de nepotismo e de manipulação de verbas por parte de dirigentes. Basta conferir que, para 24 jogadores, o número de passageiros do avião chegava a 100.
Os resultados desse anacronismo refletem-se na estrutura dos clubes, nos campeonatos e na própria formação dos jogadores brasileiros. O país que é considerado o mais brilhante celeiro de craques do planeta, mesmo dispondo de treinadores competentes, durante 24 anos ficou fora da disputa por títulos mundiais.
Não foi o suborno do Peru em 1978, o cochilada da defesa contra a Itália em 1982, o pênalti perdido de Zico em 1986, o lançamento genial de Maradona em 1990 que tiraram o Brasil da Copa. Só é vitimado por acidente quem não define margens adequadas de segurança.
O que há é uma estrutura anacrônica, que atrapalha o desenvolvimento profissional dos jogadores, a continuidade do trabalho dos técnicos, contaminando com sua irracionalidade o talento espontâneo dos craques.
A atual seleção conseguiu se impor sobre o atraso porque sua base era constituída por "estrangeiros", que aprenderam em países onde atuam noções de disciplina tática e de atenção permanente ao detalhe –algo que nas empresas modernas é chamado de controle de qualidade. Foi a despreocupação com o detalhe que vitimou gerações muito mais talentosas.
Não é coincidência o fato de os dois únicos times a se organizarem empresarialmente –o São Paulo e o Palmeiras– terem conquistado uma fieira de títulos.
É hora de a imprensa começar a dirigir seus holofotes de maneira sistemática para este submundo. Será o melhor prêmio que poderá oferecer para um país que, apesar de tudo, é tetracampeão mundial.

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